domingo, 12 de maio de 2019

MÃES ARREPENDIDAS – uma outra visão da maternidade


Livro: Mães Arrependidas – uma outra visão da maternidade
Autora: Orna Donath
Ano: 2016
Editora: Civilização Brasileira

Sobre a autora:
Orna Donath é antropóloga, doutora em sociologia e pesquisadora na Ben- GurionUniversity de Negev, em Israel. Seu trabalho concentra na discussão dos direitos reprodutivos das mulheres e em estudos de gênero. Foi presidenta da Hasharon Rape Crisis Center – organização israelense cujo objetivo é combater a violência sexual -, da qual continua ser voluntária. É autora de Making a Choice: BeingChildfree in Israel (sem tradução no Brasil).

Sobre a obra:
O título deste livro é impactante e provocativo e o desenrolar da narrativa segue essa premissa, de nos impactar e prender a atenção a cada fato apresentado e analisado, a cada depoimento apresentado e a cada reflexão colocada. Talvez esse impacto se deva ao assunto tratado, que é muito comum a todas as mulheres e ao mesmo tempo polêmico para muitas de nós: a maternidade.

Depois de um enorme alvoroço causado por um debate na internet intitulado “#regretingmotherhood”, seguido de um artigo escrito pela autora sobre o assunto e publicado na revista Sings. Orna desenvolveu um estudo em Israel com um grupo de mulheres que se dispuseram a falar sobre o arrependimento que sentem em relação à maternidade. Importante ressaltar que Israel é o país com o índice de fertilidade mais elevado do mundo, 3 filhos a cada mulher. Enquanto entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) o índice é de 1,9 (EUA) a 1,4 (Europa). Dados que impressionam e nos levam a questionamentos sobre como se desenvolve a transição para a maternidade e porque surge o arrependimento.

 “Insisti em abordar essa situação guiando-me pelo pressuposto de que nosso campo de visão social é limitado, pois não nos deixa ver nem ouvir algo que existe, mas para o qual ainda não há uma via de expressão.”,diz Orna.

Para apresentar a questão do arrependimento e as conclusões de seu estudo a autora traça uma análise das trajetórias das mulheres-mães, desde os caminhos para a maternidade até os desdobramentos que apresentam ao logo da vida, sobretudo quando a mulher-mãe se torna avó.

“...a maior parte da literatura existente sobre os relatos das mães se concentra nos sentimentos e nas vivências de mães de bebês ou crianças pequenas, ou seja, no período logo após a transição para a maternidade. A relativa escassez de referências às experiências de mães de crianças mais velhas sugere que se dá pouco espaço às narrativas retrospectivas das mães ao longo dos anos.”, conclui a autora.

A maternidade pode ser uma experiência positiva e intensa para as mulheres que desejam vivê-la dentro desse âmbito do “querer ser mãe”. É comum ouvirmos relatos sinceros de sentimentos de realização, alegria e satisfação genuína por parte dessas mulheres. Porém, isso não significa que esse desejo e anseio por tal experiência seja compartilhado por todas as mulheres. É preciso compreender que existem mulheres que querem ser mães e mulheres que não querem, porém, o fato de existir mulheres que não desejam a experiência da maternidade não diminui ou invalida as experiências daquelas que se realizam nessa transição.

Tal experiência deveria ser uma opção, algo que se realiza mediante a uma escolha. No entanto, ao investigarmos os caminhos que levam uma mulher a tornar-se mãe, constatamos que nem sempre foi por que quis ou escolheu. Este é mais um fato que precisamos reconhecer, boa parte das mulheres que transitam para a maternidade o fazem mediante a uma decisão passiva, ou seja, fazem por falta de opção para escolher outro caminho ou por algum tipo de pressão, seja da família, da religião que segue ou da sociedade como um todo.  Ao mesmo tempo as mulheres que não desejam a maternidade, e têm o privilégio de fazer essa escolha, são criticadas e julgadas pelos mesmos núcleos.

Vivemos numa sociedade ancorada nos valores burgueses de família e propriedade privada, nesse contexto ser mãe é mais um papel a ser cumprido pela mulher. Ancorados em discursos rasos sobre a naturalidade da maternidade, da função biológica da mulher, da sobrevivência da espécie e da promessa de completude do ser feminino, a sociedade paternalista/capitalista em que vivemos praticamente obriga, direta ou indiretamente, mulheres a parir.

Para muitas mulheres ser mãe não é um desejo íntimo, mas dependendo do quão inseridas estão nesses valores, acabam se tornando mães simplesmente deixando-se levar por esse fluxo de pressão e opressão. Uma vez mãe, eternamente mãe. A maternidade é uma transição irreversível. A vida de uma mulher muda completamente para sempre, como uma marca, uma cicatriz que fica eternamente. Uma mulher que transita para a maternidade, morre como mãe e não como mulher.

Dentre essas mulheres que transitam maternidade por não ter meios ou condições de questionar ou se opor a pressão que sofrem para que se tornem mães, temos aquelas que se arrependem. Algumas tem coragem de admitir e enfrentam os dilemas e conflitos desse estado consciência. Outras, carregarão em silêncio mais esse fardo, o de ter que viver uma vida que não desejou e não poder dizer nada sobre isso. Afinal, o arrependimento é uma postura emocional cuja compreensão e aceitação é relativa e equivocada. Em certos contextos como no jurídico, por exemplo, espera-se que os réus se arrependam de seus crimes, já na maternidade o arrependimento é inconcebível aos olhos da sociedade que impõe a maternidade como uma obrigação da mulher e até mesmo a culpabiliza por essa transição em certas circunstâncias.

Um exemplo disso é constatado quando tratamos da responsabilidade da contracepção, que recai sempre sobre a mulher. Ignora-se a falta de informação sobre métodos contraceptivos - uma vez que educação sexual é um  tabu gigantesco em pleno século XXI ; as possíveis falhas desses métodos; a dificuldade de acesso a eles por parte de mulheres de baixa renda e que não possuem assistência médica nem para orientação, tampouco para acompanhamento; e o total descompromisso da maior parte dos homens em relação a tudo isso. O discurso moralista que ecoa e impera em nossa sociedade é “engravidou porque quis”, no entanto, podemos ver pelos exemplos citados que isso não é verdade. Muitas mulheres engravidam porque são condicionadas a fazê-lo.

Analisando todos esses aspectos que envolvem o destino das mulheres e o que a sociedade reserva para elas, a antropóloga Orna Donath desenvolve esse estudo profundo sobre um fato que até então tem sido obscurecido nas discussões sobre a maternidade, inclusive no movimento feminista, o arrependimento.  O livro “Mães Arrependidas – Uma outra visão da maternidade” traz ao centro das discussões uma realidade pouco reconhecida, a existência de mães que se arrependeram de terem se tornado mães. Através deste estudo realizado em Israel, a autora aponta para a diferença entre o desejo de ser mãe e o fato de ser mãe. E a incômoda existência do arrependimento.

Esse arrependimento não é um fenômeno individual que poucas mulheres manifestam devido a sua incapacidade de se adaptar a maternidade, trata-se de um alerta a toda a sociedade que se torna a grande culpada por esse sofrimento, afinal, a sociedade como um todo, empurra e persuade as mulheres à maternidade,mesmo que sem condições emocionais ou sociais de fazê-lo, sem oferecer políticas de reprodução que as permitam vivenciar a maternidade em sua plenitude.
“Se pensarmos nas emoções como maneira de se manifestar contra sistemas de poder, então o arrependimento é um alarme que deveria não apenas instar as sociedades a facilitarem as coisas para as mães, mas nos convidar a repensar as políticas de reprodução e nossas ideias sobre a obrigação de ser mãe.”, enfatiza a antropóloga.

Esse fato não pode ser ignorado, tampouco ocultado ou empobrecido por julgamentos moralistas. Existem mulheres que sofrem a maternidade e ao propor um estudo sério e comprometido em relação ao assunto, Orna dá voz a essas mulheres muitas vezes silenciadas. Seu livro é estruturado em capítulos organizados de forma a conduzir o leitor gradativamente a uma reflexão profunda sobre o tema. Ampliando as possibilidades de escuta dessas vozes que gritam o arrependimento da maternidade. Ou melhor, pelo reconhecimento e compreensão dessa emoção.Compreender o arrependimento como uma postura emocional legítima, é uma das propostas do livro. A outra, é de que a maternidade deixe de ser vista como um papel a ser cumprido obrigatoriamente pelas mulheres e passe a ser compreendida como uma relação entre a mulher-mãe enquanto sujeito de sua própria história, que reflete, analisa e avalia constantemente a relação que estabelece com o outro ser a quem chama de filho. Vista como uma relação, a maternidade tira um certo peso dessa experiência, o peso da dependência tanto da mãe quanto dos filhos.
Permitindo um desenvolvimento mais autêntico, pleno e furtivo para ambos, livre da ditadura dos padrões estabelecidos pela sociedade que assim como determina o papel de mãe, também determina o papel de filho.

O estudo apresentado no livro, juntamente com os trechos dos relatos das mulheres que participaram dele, compõe um tratado que convida a todos a uma reflexão profunda sobre a maternidade e nos instiga a pensar em possíveis caminhos para que ela não seja instrumento de opressão sobre as mulheres, mas apenas um caminho possível, nunca obrigatório. Talvez reconhecer a legitimidade do arrependimento, possa ser um início algum avanço nessa questão tão pungente para nós mulheres, que em algum momento da vida nos deparamos com o dilema:ser ou não ser mãe?

O livro divide-se em seis capítulos. A seguir um breve resumo dos assuntos abordados em cada um deles.

1- Os caminhos para a maternidade: O que a sociedade dita versus as experiências das mulheres.

Neste capítulo, são apresentados os diversos caminhos que levam as mulheres à maternidade. Os conflitos entre a maternidade naturalizada e a maternidade realizada, contrapondo o “caminho natural” à “liberdade de escolha”. Através dos relatos das mulheres que participaram do estudo,a autora aponta para o fato de que muitas mulheres não desejam ser mães e apenas se deixam levar pela corrente. Os desejos e motivos para transitar para maternidade são diversos e muitas vezes ocultos, o que leva mulheres a consentirem ser mães, porém sem vontade nenhuma, o que ela chama de decisão passiva. Ao fazer uma análise mais concreta e com base nas razões das mulheres que participaram do estudo, dando eco a suas vozes, a autora também desmistifica a ideal neoliberal/capitalista do poder de escolha.

2- As exigências da maternidade: Aparência, comportamento e sentimentos que as mães deveriam ter.

Os relatos das mulheres que participaram do estudo nos dão uma pequena amostra do quão pesado o fardo da maternidade pode ser, como as cobranças e julgamentos para que sejam boas mães e para que cumpram determinado papel padronizado e imposto pela sociedade paternalista/machista em que vivemos. São apresentados também os sentimentos ambíguos que a maternidade pode gerar, tanto como amar os filhos, detestar os filhos ou apenas detestar a maternidade. A partir dessas constatações a autora aprofunda a distinção entre arrependimento e sentimentos de ambivalência.


3- Mães arrependidas: Se eu pudesse não ser mãe de ninguém.

O arrependimento está ligado à nossa noção de tempo e memória, posto como uma postura emocional que nos coloca a olhar para traz, rever, reavaliar, reconsiderar. Comportamento desvalorizado na sociedade contemporânea onde o pensamento neoliberal considera que progresso é um caminho em linha reta, sempre olhando para frente e nunca para trás. Neste contexto, o arrependimento da maternidade é considerado em nossa sociedade como uma postura emocional ilícita para as mães que tem filhos e ao mesmo tempo é utilizado como condenação prévia para aquelas que não desejam ser mães.
Ao fazer uma análise de suas próprias trajetórias, algumas mulheres se arrependem e consideram um erro terem engravidado. Porém arrepender-se da maternidade, não significa arrepender-se dos filhos. Muitas mulheres vão concordar com a seguinte afirmação “amo meus filhos e detesto a maternidade”.  Neste capitulo são apresentados as vantagens e desvantagens da maternidade e como as mães que se arrependem lidam com essas questões.

4- Experiências de maternidade e práticas de arrependimento: Viver com um sentimento ilícito. 

A maternidade traz uma grande mudança na vida de uma mulher, uma mudança irreversível. As transformações que a maternidade pode trazer, tanto podem estar no campo emocional da satisfação e da realização, assim como pode estar no campo da frustração e do arrependimento. A maternidade é irreversível e torna-se traumática a medida que as mães vão tomando consciência do quanto suas vidas não lhes pertencem mais. A prometida sensação de completude da maternidade é ocupada por uma sensação infinita de comprometimento e responsabilidade que se estenderá mesmo depois dos filhos estarem crescidos. Neste capítulo, a autora expõe as diversas práticas que se originam do conflito entre ser mãe e desejar não ser, como o suposto conflito entre o desejo de não ter filhos e o amor pelos filhos reais.

5- Quem é você, mãe? As mães arrependidas entre o silêncio e o discurso.

A consciência do fardo da maternidade traz vários dilemas e desafios. Dentre eles, a necessidade de compartilhar seus sentimentos e o conflito com sua voz silenciada pela sociedade que não deseja ouvir seu arrependimento, suas confusões, suas angústias. A responsabilidade para com a saúde emocional dos filhos e o medo de que se sintam indesejados, se confronta com a vontade de ser transparente e honesta com os próprios sentimentos. Neste capitulo é apresentado uma investigação mais profunda da consciência desperta das mães arrependidas. E como lidam na prática com esse despertar.


6 - Mães- sujeitos: Investigar o estado das mães por meio do arrependimento.

A investigação mais profunda do arrependimento da maternidade aponta para dois significados importantes, que devem ser considerados antes de criticar ou condená-lo. Primeiro, a satisfação com a maternidade não tem a ver somente com as boas condições materiais para vivê-la. Mulheres que vem de classes economicamente abastadas, compartilham dos mesmos conflitos e sentimentos que mulheres de classes de baixa renda.  As conclusões do estudo também questionam as premissas de que o arrependimento surge quando as mulheres não conseguem conciliar a carreira profissional com a maternidade. Este capítulo também sugere que para uma compreensão mais ampla da maternidade, precisamos deixar de vê-la como um papel a ser cumprido pela mulher e começar a compreendê-la como uma relação na qual as mães sejam sujeitos que examinam, pensam, avaliam e buscam equilíbrios.

Bem, o que mais posso dizer? Amei este livro assim como transitar pelas reflexões que ele traz.
Espero que gostem também, boa leitura!

Se já leu, deixe seu comentário, bora somar ideia. Abraço.

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