quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

PÃO E ÁGUA

primeiro proibiram os saraus
disseram que a Poesia era algo inútil
depois eliminaram a Filosofia dos currículos escolares
pensar já não era necessário
por fim, queimaram páginas e mais páginas da História
e pouco a pouco destruiram tudo o que poderia ser chamado
de essência humana

hoje

alguns dizem que a Ignorância é uma benção
e outros dizem, Amém!


(Karina Guedes - Agosto/2019)

domingo, 1 de dezembro de 2019

QUANDO EXPLORAÇÃO

sob as ancas, joelhos, panturrilhas e tornozelos
todo o peso do caminho
trabalha, trabalha, trabalha

padecer do corpo, o preço da sobrevivência
na mente estafada, a sobrecarga dos anos
carrega, carrega, carrega,

cansaço que denuncia o cúmulo da servidão
nos sonhos, um sono profundo
aguenta, aguenta, aguenta

transpassa ossos, músculos e tendões
dói a alma
luta, luta, luta

a morte servida em jornadas semanais
sufoca a transcendência
resiste, resiste, resiste!

Escuto uma voz...

Não morra!
o prazo de validade ainda não venceu
e o contrato ainda não acabou

Não morra!
poque senão esse teu prejuízo
será em parte meu

Não morra ainda,
afinal o propósito da minha vida
é lucrar com a tua


(Karina Guedes - maio/2019)

sábado, 30 de novembro de 2019

VENDO PÓ...ESIA! - Rodrigo Ciríaco

Gosto de poesia que me tira do lugar, me arranca o chão batido do cotidiano. E definitivamente esse livro do Rodrigo Ciríaco é dessas poesias de fazer a gente gritar, de raiva, de alegria, de indignação e de paixão. Acho que é isso, uma poesia apaixonante. Que rasga o peito e infla-a-alma, inflama, incendeia e nos revela a vida pelas víceras. ADORO!

Vendo Pó...esia! é um livro diferente de muita coisa que se tem lançado por aí. Não só em seu inquietante projeto gráfico, que faz com que você leia até de ponta cabeça, mas principalmente por trazer em seu ritmo uma explosão de sons. Do grito ao sussuro, do barulho ao silêncio. Poemas para serem lidos em voz alta, mesmo no silêncio. Para serem relidos e semeados por aí. Porque acima de tudo são gritos de luta, de manifestAÇÃO de um poeta militante, educador persistente e insistente na arte de provocar. Um poeta da Rua mais do que da lua!  Da Periferia! Da Resistência! Da verdade nua e crua!


Enfim, é difício resenhar esse livro sem entregar o ouro, rs. A poesia do Rodrigo Ciríaco é assim, contagiante! Não se espante se logo depois de ler os primeiros poemas, você sentir uma vontade descontrolada de pegar papel e caneta e começar e desenhar seus próprios gritos. O jogo poético do autor é sedutor, ele te provoca e você aceita e logo grita tua manifestAÇÃO também!
Recomendo este Pó...esia, três dosses ao dia. Só pra começar.

A primeira vez que vi o Rodrígo em cena, foi no Sarau da Cooperifa há uns 13 anos. E de lá pra cá acompanho suas redes sociais e projetos literários. Sempre o vi como um escritor e educador muito engajado e mais do que isso muito entregue e disposto ao trabalho que desenvolve. Recentemente participei de uma oficina ministrada por ele, "A Pedagogia dos Saraus", foi muito incrível. Ele é um genuíno provocador poético,  desses de fazer você sentir vontade e sede de poesia, simples assim.
Em seu trabalho segue semeando vontades literárias por onde passa e de certa forma, essa peregrinação poética está presente em seus textos. Trazendo para o papel sempre um olhar crítico sobre a sociedade e sobre nosso próprio modo de estar neste mundo.



Um pouco mais sobre o autor:

Rodrigo Ciríaco é educador e escritor, autor dos livros “Te Pego Lá Fora”, “100 Mágoas” e “Vendo Pó…esia”. Participa há mais de 10 anos do movimento de saraus da periferia. É idealizador do projeto “Literatura (é) Possível”, que desde 2006 desenvolve ações de incentivo a leitura, produção escrita e difusão literária em escolas públicas estaduais e municipais, com o “Sarauzim – Sarau dos Mesquiteiros”. Foi autor convidado do Salão de Paris (2015 e 2013), FELIV – Festival do Livro e Literatura Infanto-Juvenil da Argelia (2014), 40ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires (2014), FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty (2011), entre outros.




Karina Guedes
@okarapoetica


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#vendopo...esia
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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

2º RODÍZIO LITERÁRIO! "TUDO NELA BRILHA E QUEIMA"

Com muita alegria venho dizer que já está rolando o nosso 2º Rodízio Literário.!!!! 

A ideia é fazer um livro circular e passar de mão em mão, para que mais pessoas possam ter acesso à leitura. E depois, ao final do rodízio fazemos um encontro para conversar sobre o livro. 

O livro da vez é Tudo nela brilha e queima, da talentosa Ryane Leão. 

Com uma métrica própria, versos intensos, Ryane Leão nos convida a poetizar  e dar vida à nossa voz e nossa poética mais íntima.  Afinal, sua poesia é como um chamado para a coragem de questionar, protestar e amar.  Empoderamento, reflexões, desilusões, recomeços,  dilemas do feminino, luta e  muita paixão pela palavra , são marcas de seu trabalho.  Ryane começou publicando seus poemas em lambe-lambes e espalhando pela cidade, e também no Twitter.  O projeto @ondejazzmeucoracao, tem milhares de seguidores e propõe um grito de poesia e de luta.  Difícil não se entusiasmar com versos tão poderosos que soam aos nosso ouvidos como gritos de dor, amor e resistência!

Acompanhe as edições e convites para participar no Instagram: @okarapoetica . Segue lá! 

Em breve infomarei quando e onde será o próximo encontro. 

Inté!




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domingo, 13 de outubro de 2019

FRANKENSTEIN OU O PROMETEU MODERNO - Mary Shelley

 


Frankenstein ou o Prometeu moderno, é um romance de terror gótico com inspirações do movimento romântico, escrito por Mary Shelley aos dezenove anos de idade.

A primeira vez que li esse livro foi  há muitos anos numa versão resumida dessas edições de primeiras leituras, um texto bem raso. Talvez por não ser o texto completo, não consegui captar a essência e intensidade desta história fascinante.

Desta vez, lendo o texto completo numa edição bilingue, simplesmente amei esta obra. Foi como se estivesse lendo pela primeira vez. 

Que texto! 

Uma narrativa incrivelmente envolvente, com personagens intensos e que nos convida a fazer algumas reflexões acerca do ser humano, da sociedade, da liberdade, do amor, dos males que assombram nosso espírito e nosso destino. 

Porém, publicá-la não foi algo fácil. O mercado literário que nunca foi muito aberto às mulheres, em 1818 era ainda mais exclusivo e dominado pelos homens. O trabalho de Mary Shelley foi rejeitado por vários editores e muitos ainda duvidavam de sua autoria, sugerindo que a criação pertencia ao seu marido, afinal Percy Shelley era um poeta bem conhecido. A primeira edição foi publicada anonimamente em três volumes, como de costume a época, e com o prefácio de Percy Shelley. Na segunda edição Mary já figurava como autora da obra e na terceira edição de 1831, talvez a mais popular publicada em volume único, ela escreve uma introdução que narra a sucessão de eventos que a levaram a compor a obra. 

A edição que acabo de ler foi a primeira lançada em 1818, considerada por muitos especialistas a que conserva melhor o verdadeiro espírito da obra, pois ainda não sofrera as alterações e nem as revisões que a própria autora fez depois. 

Confesso (é notável) que é com muita paixão que escrevo estas linhas. Esta história de certa forma me tocou desde a primeira leitura. Porém, relê-la dezessete anos depois me trouxe várias percepções e reflexões que eu não tinha tido anteriormente.

A começar pela genialidade da autora. Mary Shelley tinha apenas 19 anos quando escreveu esse romance. Através de sua história, ela cria não a penas uma brilhante narrativa, mas também um novo gênero literário: a literatura de ficção científica. 

Filha de Mary Wollstonecraft , escritora inglesa do século XVIII, filósofa, defensora dos direitos das mulheres e de William Goldwy, jornalista inglês, filósofo, político, novelista, considerado um dos criadores do Anarquismo. Mary cresceu numa família de questionadores e isso estará presente em sua obra, pois seu livro apresenta alto teor filosófico e faz com que seja não apenas uma história de terror que perturba, mas também que comove e faz pensar.

Seu estilo é marcado por uma escrita elegante e sofisticada, mas sem ser presunçosa. Poética sem ser pedante e que prende o leitor a cada página com a envolvente cumplicidade das cartas. Através da narrativa epistolar, a autora utiliza-se do recurso estilístico do ponto de vista. Ora a voz narrativa é do criador, ora da criatura, ora do capitão que reconta a história que acabara de ouvir para sua irmã distante. Esse contar e recontar faz com que a narrativa ganhe alto teor de argumentação, deixando o leitor muitas vezes em dúvida em relação a que partido tomar, se do criador ou da criatura. Ou de ambos.

As personagens são intensas e de personalidades bem marcantes, como a meiga e bondosa prima Elizabeth, o amoroso e compreensivo pai Alphonse Frankenstein, o ingênuo e deslumbrado amigo Clerval, o orgulhoso e obstinado Victor Frankenstein e a enigmática e cativante Criatura, são alguns exemplos. 

Considerado um grande romance do gótico inglês, movimento que se inicia na arquitetura da idade média e depois se expressa também na literatura, o texto de Mary Shelley apresenta as principais características deste estilo como certas visões do terrível na natureza,  as tempestades fortes, raivosas, assustadoras, ambientes que sugerem terror, medo; comportamentos e situações estranhas e criaturas de origem sobrenatural. Porém, traz também marcas do romantismo, como valorização desta natureza imponente e grandiosa, da emoção, do instinto. A dicotomia entre o sagrado e o profano: que por um lado, apresenta um sentimento religioso muito forte e por outro a atração e fascínio pelo demoníaco, pelas ciências ocultas, sentimentos obscuros que podem levar o homem ao crime e a atitudes pavorosas.  Um texto magistral, uma obra que merece ser lida.


RESUMO DA HISTÓRIA

Não irei expor aqui todos os detalhes do texto, meu resumo contém apenas as partes mais significativas para a análise, porém será inevitável revelar partes do enredo.

Tudo começa quando o jovem viajante Robert Walton durante uma expedição com destino ao Polo Norte, em determinado ponto de sua viagem após ser impedido de avançar por um bloqueio de gelo, encontra um homem em frangalhos num trenó quase à beira da morte. Este homem é resgatado e fica aos cuidados de Walton que havia acabado de escrever uma carta a sua irmã lamentando a solidão e a falta de ter um amigo íntimo. 

O homem resgatado chama-se Victor Frankenstein e depois de algum tempo começa a contar a Walton sua história no intuito de lhe passar alguns conselhos.  O relato começa com Victor contando sobre sua infância e sua educação, que fora livre e culturalmente rica. Desde a infância já se mostrava curioso e interessado em compreender os fenômenos naturais. Filho de família abastada teve a oportunidade de estudar em boa escola e ir à universidade. 

Em seus primeiros passos nos estudos se aproximou de autores alquimistas, mas na universidade tornou-se estudioso das ciências naturais especialmente de química. Foi nesta época, vivendo afastado da família e mergulhado em estudos que Victor à medida que se destacava na universidade tornou-se obcecado pela investigação sobre a criação da vida. Dedica-se por quase dois anos a essa pesquisa e descobre, de modo não revelado na história, como reavivar tecidos mortos e então se empenha em um projeto quase suicida de criar um ser humano. Trabalho que lhe suga toda saúde física e mental, mas que conclui com êxito. Victor finalmente dá vida à Criatura. Porém, esta não é dotada de harmonia e beleza como ele havia imaginado e nem é uma pessoa ainda. Surge horrenda como um cadáver ambulante e só. Victor se apavora com sua criação, a rejeita e a abandona. A rejeição e o abandono, serão os primeiros sentimentos conhecido pela criatura e isso será marcante e determinante em seu destino.

A criatura some, depois de um tempo Victor decide voltar para casa de seu pai e descobre que seu irmão caçula havia sido assassinado. A pessoa culpada pelo crime é Justine, uma inocente criada e Victor logo descobre que o verdadeiro assassino é o monstro que ele criou. Mergulhado em sentimento de culpa e tristeza, Victor inicia um duelo com a criatura e com sua própria consciência. Não pode contar a todos o que realmente sabe, pois seria tido como louco e ao mesmo tempo não tem forças para enfrentar o monstro que criara. Desde a morte da mãe de Victor e as mortes de seu irmão e de Justine, a família se vê em um ciclo de desgraças e tristezas. Diante disso seu pai propõe que a família se retire para o campo por uns dias e então a família viaja. Num belo dia em que todos estavam descansando na hospedaria, Victor decide ir sozinho até o cume Montanvert e quando chega no alto vê que uma criatura gigante e horrenda o persegue, e que o encontro com seu monstro seria inevitável. 

Para a surpresa de Victor e do leitor a criatura fala e diz que quer apenas conversar e pede para que Victor o escute sua história. E aqui inicia-se as páginas mais emocionantes da narrativa. Até então a autora deixa o leitor conhecer a criatura pelo olhar egoísta e obstinado de Victor e neste momento a Criatura tem a oportunidade de se apresentar e narrar o seu lado da história, numa sequência argumentativa objetiva, lúcida e envolvente. Ao se apropriar da vantajosa capacidade de linguagem que tem os humanos, a Criatura adquire autonomia de pensar e agir.  E relata os eventos que se sucederam depois que deixou o laboratório de Victor e de como conseguiu sobreviver depois de ser rejeitado e abandonado pelo seu criador, de como aprendeu a observar a natureza e a si mesmo. Em sua busca em compreender o sentido da vida, chegou às questões inevitáveis: Que eu sou? De onde venho? Para onde vou?

Em sua trajetória em busca por respostas, conhece uma família de camponeses e lhes observa a certa distância. O cotidiano desta família inspira na Criatura desejo afeto, amor e compreensão. Porém, ao receber apenas preconceito, ódio e maus tratos das pessoas que cruzaram seu caminho, a Criatura desenvolve sentimentos de ira, revolta, inveja e ódio, nutrindo profundo sentimento de vingança contra Victor Frankenstein que o colocou no mundo e o abandonou sem lhe garantir o direito ao afeto e ao amor. E essa revolta o levou a cometer os mais perversos atos, inclusive o assassinato do irmão caçula de Victor.

Ao final da conversa a Criatura faz um comovente pedido ao seu criador, ele diz que apenas deseja uma companhia e pede para que Victor faça uma outra criatura fêmea para ser sua companheira, alguém como ele nas mesmas proporções e deformidades, alguém que possa vê-lo como semelhante e não o rejeite.

Mesmo depois de ouvir o emocionante relato, Victor não consegue perdoá-lo e sente repulsa por ele. E para se livrar da situação desastrosa que criara (ou até mesmo aliviar parte de seu sentimento de culpa).  Apesar de reconhecer sua culpa em toda essa tragédia, sendo ele o criador do monstro e de certa forma culpado pelos desastres que se sucederam desde a conclusão de seu projeto, ele não consegue lidar com as consequências de seus atos.  Mergulha num abismo profundo de depressão e amargura. Toda genialidade de seu ser é consumida aos poucos pelo duelo psicológico travado com a criatura, pois ele lhe deu a sobrevivência, mas não lhe garantiu a vida. E a criatura reivindica seu direito de viver e gozar daquilo que pode ser mais sublime no ser humano, o amor. E esse duelo entre criador e criatura, causará a morte de mais pessoas inocentes, trazendo mais tragédias para a sua família e levará Victor Frankenstein a ruína total. Obcecado e desafiado pela sua criatura, irá persegui-lo até o fim de seus dias, literalmente.


POSSÍVEIS LEITURAS E REFLEXÕES 

1) Os limites da ciência

 Alguns elementos do contexto histórico presentes nos eventos que entrelaçam a trama, dão ao romance uma contemporaneidade que foi impactante na época e ao mesmo tempo se mostra atual até os nossos dias. Como por exemplo, os sentimentos controversos causados pelo avanço das pesquisas cientificas, sobretudo a medicina. Se por um lado ficamos maravilhados com descobertas que trazem curas para nossas doenças, por outro ficamos amedrontados com avanços que estão além da nossa compreensão ou que exigem uma reflexão ética e moral, como no caso das pesquisas sobre clonagem, por exemplo. 

 Até que ponto o ser humano pode e deve interferir na “criação” da vida? Esta reflexão está presente na obra de Mary Shelley começando com o próprio subtítulo “O Prometeu moderno”, referindo-se ao mito de Prometeus que na mitologia grega roubou o fogo dos deuses e deu aos homens, sendo violentamente castigado depois.  Victor que a princípio é apenas um jovem estudante extremamente curioso, se torna um cientista obstinado e sofre as consequências de sua obstinação.

Desde a criação de vacinas, sucesso de transfusões de sangue, aos últimos avanços em pesquisas cientificas envolvendo o DNA humano e a criação de bebês com características escolhidas pelos pais, o debate sobre bioética e os limites da ciência são inesgotáveis. E já lá no séc. XIX Mary Shelley propunha essa reflexão de forma brilhante. 

"Ninguém, a não ser aqueles que já experimentaram, pode experimentar a tentação da ciência."  (Victor Frankenstein)


2) Homem versus Natureza

Esse embate está presente o tempo todo no texto, a natureza é apresentada de forma assustadora e bela, ao mesmo tempo temível e sublime, porém sempre como superior. As paisagens são descritas com minuciosos detalhes e sempre estão relacionadas com momentos de elevação da consciência dos personagens ou conforto psicológico para os mais diversos anseios da alma, ou seja, a natureza se coloca como inesgotável fonte da verdadeira cura. Se sobrepondo aos “pequenos” passos alcançados pelas recentes descobertas científicas época. 

“... como eu já tinha me acostumado à chuva, á umidade e ao frio, decidi ir sozinho até o cume do Montanvert. Lembrava-me do efeito que a vista do imponente glaciar, sempre em movimento, produzira em minha mente quando vi pela primeira vez. Eu fora tomado por um êxtase sublime, que dava asas à alma e permitia que ela levantasse voo desse mundo sombrio em direção à luz e à alegria. A visão do terrível e do majestoso na natureza, de fato, sempre tivera o efeito de elevar minha mente e fazer-me esquecer das preocupações passageiras da vida.” (Victor Frankenstein, ao decidir escalar o cume do Montanvert)


3) Liberdade 

A liberdade é posta em xeque. Afinal, somos livres? Ou a liberdade é uma ilusão que a natureza humana persegue?

Ai! Por que os homens ostentam uma sensibilidade superior à dos animais? Isso só os torna mais necessitados. Se nossos impulsos se resumissem à fome, sede e desejo, seríamos quase livres; mas somos agora movidos por cada vento que sopre e por uma palavra casual ou uma imagem que aquela palavra possa transmitir.”

Tanto nesta como em outras passagens da narrativa, é sugerido que o conhecimento é ao mesmo tempo glória e ruína dos homens. Somos livres para pensar, porém os pensamentos podem nos trazer sentimentos que nem sempre controlamos, alegria ou tristeza não depende somente da vontade humana. As influências externas condicionam nosso estado de espírito. 

 

4) A origem do mal e a exclusão social

A maldade nasce com o ser humano ou é condicionada pelo meio social? A história coloca uma reflexão sobre a natureza da maldade no ser humano. Seria o mal parte da natureza humana, ou uma característica adquirida mediante a privação de amor e aceitação?

O que a trajetória da Criatura nos sugere é que o mal não está na gênese do coração humano, ele é desenvolvido à medida que somos expostos a sentimentos malignos, de desprezo, ódio e rancor. A Criatura usa esse argumento em sua defesa, ao expor que desde o início deseja ser aceita e amada pelos humanos. Mas a superficialidade da sociedade vigente, julga pela aparência e condena tudo o que é estranho ou fora do padrão imposto. 

O único ser que consegue ver a Criatura além de sua aparência e enxergar o amor e desejo de afeto que carrega em seu coração é justamente um cego. O velho da cabana se solidariza com sua dor, ao ouvir a criatura compartilhar seu imenso desejo de ser aceito, de receber afeto de poder dar todo amor que é capaz. Mas ao ser brutalmente rejeitada em várias situações, a Criatura desperta em seu coração ódio, ira e inveja por não ter direito ao amor que os outros têm. A partir dessa confusão de sentimentos negativos e intensos nasce o desejo de vingança que levará a cometer barbaridades em sua trajetória e a perseguir Victor Frankenstein, tornando-se uma criatura excluída, marginalizada e desprezada pelo seu criador e por todos com que tem contato. Seria então a infelicidade que torna as criaturas más? 

 De todas as questões colocadas, essa foi uma das mais tensas do livro e confesso que não tenho uma opinião conclusiva a respeito. Todavia, a argumentação da Criatura é por demais coerente, o que me despertou uma forte empatia pela sua dor. 

“Devo ser considerado o único criminoso, quando toda a humanidade pecou contra mim? Porque você não odeia Felix, que escorraçou de sua sua porta com desprezo alguém que era seu amigo? Por que você não odeia o camponês que tentou matar o salvador de seu filho? Não, esses são seres virtuosos e imaculados! Eu, o miserável e o abandonado, eu, o aborto que deve ser desprezado, expulso e maltratado. Mesmo agora me ferve o sangue, ao lembrar-me dessas injustiças.” (a Criatura)

 E aqui podemos, fazer um paralelo com nossa sociedade contemporânea e talvez compreender melhor a história de Mary Shelley. Hoje acompanhamos a luta de mulheres, negros, homossexuais, indígenas, transgêneros para poderem simplesmente existir. O número de feminicídios aumenta a cada dia, vemos as manchetes dos jornais que denunciam o genocídio contra as populações negras e indígenas, a transfobia é uma realidade latente. Como essas pessoas podem se desenvolver plenas e felizes, livres de ódio e rancores numa sociedade que as exclui, marginaliza, persegue e mata? Talvez esses questionamento nos leve a compreender por que a felicidade plena não está ao alcance de todos. Difícil ser feliz sendo excluído por ser diferente e nutrido apenas de preconceito, ódio e rancor.  A intolerância é uma motivação perigosa e muitas vezes letal. A sociedade pode até não ser a única forjadora do mal no ser humano, mas podemos ver que com uma visão medíocre do outro e falta de empatia com a dor alheia, contribui bastante para isso. 


5) A solidão, um castigo. 

 Ao ler o relato tão comovente da Criatura sobre sua necessidade de companhia, ao pedir que Victor lhe faça uma fêmea, não seria exagero dizer que podemos até nos reconhecer em sua angústia. Pois, nós humanos passamos por um processo semelhante durante nossa criação e desenvolvimento. Nascemos sem pedir para nascer, trazidos a um mundo estranho, expostos a sensações nunca sentidas e temos de interpretá-las a princípio sozinhos. Depois aprendemos a linguagem, adquirimos um idioma, começamos nossa aventura ao descobrir e desvendar a vida, o mundo e desde o princípio buscamos por afeto e companhia. A aversão à rejeição e a busca por amor e completude calcam os alicerces da nossa existência. Com exceção daqueles que apresentam alguma patologia, ninguém gosta de ser rejeitado, julgado pela aparência ou excluído. De modo geral todos nós desejamos ser aceitos em nosso círculo social e amados pelos nossos pares. Talvez tenha sido intencional, talvez não, mas o com comovente relato da criatura, Mary Shelley nos convida a fazer uma profunda reflexão acerca da essência humana, como e por que nos tornamos o que somos, e porque buscamos sempre viver em sociedade e não ao contrário. 

A desgraçada vida da Criatura, ilustra o que pode acontecer com qualquer pessoa marginalizada e condenada ao isolamento social por puro preconceito, medo ou falta de compaixão. 

A solidão torna-se para a Criatura o pior dos castigos, afinal ao se transformar num verdadeiro demônio, não encontra companhia nem na maldade. Pois não encontra ninguém que consegue chegar ao nível tão profundo de crueldade em que chegou, nem mesmo seu criador que perdera todo seu senso de humanidade, pode alcança-lo.


6) O eterno duelo entre criador e criatura.

A tentativa de chegar ao conhecimento que ninguém chegou, leva Victor às consequências mais extremas. Ele se tona melancólico, obcecado e depressivo.

Durante toda a história vemos Victor fugir da sua criação. Desde o início ele aborta sua experiência e mesmo sofrendo crises de consciência e autojulgamento ético e moral, ele não tem coragem de assumir as consequências de seus atos e foge. Mas ao mesmo tempo sabe que o confronto com sua criatura será inevitável e toda sua tormenta só terminará com a morte de um dos dois. 

Ao tentar imitar Deus, dando origem a uma vida bastarda, Victor sofre toda má sorte de amarguras, perdas e tristezas que o levam ao definhamento de toda sua vitalidade como ser humano e paga com sua vida por seu pecado.  A partir da morte, Victor deu luz a uma infeliz existência e como consequência de sua audácia, pagou com a própria vida.  

No distinto duelo entre criador e criatura, assistimos o despencar do fluxo vital nos dois. Ambos se elevam, ambos declinam. Não há vencedor, apenas ramificação de dor, tristeza e melancolia. 


OUTRAS  OBSERVAÇÕES

Leitura para reler e reler

Um clássico não se esgota em uma só leitura, por isso é um clássico. Por ser um texto que permite diferentes reflexões e cada vez mais complexas. Seja pela análise da estética literária, pela interpretação psicológica das personagens, pelo contexto histórico ou pelos debates que apresentam e que atravessam o tempo, sendo possíveis de serem desenvolvidos e ampliados em qualquer época. 

Uma história perturbadora, onde sentimentos como tristeza, dor, tédio, melancolia, ódio, inveja, vingança, são apresentados de maneira reflexiva e nada superficial. Gosto desse terror clássico, que apresenta não apenas o sombrio, o medo, o sobrenatural para assustar o leitor, mas que através de uma narrativa bem elaborada e personagens bem construídos, nos revela um possibilidade de leitura sobre nós mesmos e nosso sentimentos mais ocultos e sinistros. 

 Simplesmente amei ter lido este livro e o farei novamente em outra oportunidade. Fiquei intrigada com a obstinação pelo conhecimento que o dr. Victor Frankenstein desenvolve e gostaria de entender mais esse ponto, sob o ponto de vista da psicanálise. 

Por que algumas pessoas são extremamente curiosas desde a infância e outras não? Por que algumas querem ir além dos limites colocados e outras se contentam com o que está posto? Por que algumas conseguem oferecer afeto e ter empatia com a dor alheia e outras não?

O professor Marcos Bagno, pessoa que admiro muito, disse certa vez “A ciência não é a busca por respostas e sim por perguntas melhores”. Por que será que alguns teimam a vida inteira atrás dessas perguntas e outros aceitam qualquer resposta? 

E para finalizar, confesso que terminei o livro com uma imensa vontade de ler tudo de novo. Mas farei isso em outro momento, pois preciso de outras leituras, para poder compreender melhor esta história incrível e tentar encontrar algumas respostas possíveis ou questionamentos melhores.


Karina Guedes

@okarapoetica


Texto originalmente publicado no Recanto das Letras: 

https://www.recantodasletras.com.br/escrivaninha/publicacoes/preview.php?idt=6768816

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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

FLIM 2019 ! A FESTA DA PALAVRA VIVA!


Debates intensos, música, literatura e muita poesia. Foi intenso! Uma festa literária com as mais diversas formas de manifestações da palavra. Ancestralidade, oralidade e lugar de escuta foram chamados constantes durante as diversas mesas. Resgatar as origens da literatura, se colocar no lugar do outro, ouvir silêncios. Eis o convite posto para as muitas leituras de incontáveis narrativas. Resistência é palavra de ordem para o atual momento em que vivemos. E nesses dias de festa literária, vi a literatura resistir, insistir e acontecer. É impossível sair de um encontro desses sendo a mesma pessoa de antes. Difícil traspor em poucas palavras todas as emoções vividas, mas tentarei contar um pouco do que senti nesses dois dias que participei. 

Um dos momentos mais marcantes para mim foi a mesa literária "Lugares e Falas" com a presenta da escritora a Eliane Potiguara e por mais dois escritores incríveis, que até então eu não conhecia. Amara Moira e Marcus Groza que com suas falas provocadoras e cativantes fizeram do encontro um momento intenso de falas e escutas.

Particularmente me emocionei muito a presença da Eliane Potiguara e vou contar por quê: ela foi uma grandiosa inspiração quando comecei a descobrir lá nos idos de 2010 a recente, e até então meio desconhecida nos meios acadêmicos, literatura indígena em língua portuguesa. Naquela época participei de um Sarau das Poéticas Indígenas na Casa das Rosas em São Paulo e ali conheci pessoalmente Daniel Munduruku e Carlos Tiago e através deles descobri a literatura indígena e outros escritores como Eliane Potiguara. Foi então que decidi conhecer mais de perto essa literatura “emergente” e fazer o trabalho de conclusão de curso de letras sobre esse tema.
A princípio queria fazer a análise do livro da Eliane, mas estava muito difícil consegui um orientador na faculdade. Sempre que eu abordava um professor e expunha meu tema, recebia uma recusa. Alguns simplesmente me desestimulavam abertamente, dizendo que eu deveria dissertar sobre autores mais conhecidos, tipo Clarice Lispector e Machado de Assis. E eu dizia, “tenho todo respeito a esses escritores maravilhosos e consagrados, mas quero falar de gente viva e da literatura que está sendo criada neste momento”.  Por mais que no fundo eu não soubesse exatamente que ponto da literatura ou textualidades indígenas iria abordar, tinha certeza de que esse era o assunto que precisava ser discutido num curso de letras. E queria muito trazer essa expressão literária para minha realidade de estudante e futura professora. Mas foi bem difícil, os professores simplesmente não me davam ouvidos. Até que um belo dia, conversando com a querida  professora de literatura infantojuvenil e explicando minhas descobertas, ela perguntou se não tinha nenhum autor “desses indígenas” que tinha escrito livro para criança. Na hora me lembrei do primeiro livro do Daniel Munduruku que li e disse que sim. Então, a professora disse que talvez pudesse ser minha orientadora, apesar de não saber nada sobre esse tema. Aceitei esse talvez como um sim e comecei o meu trabalho. 
Não pode ser com o livro da Eliane como eu havia pensado inicialmente, mas pode ser com o do Daniel e foi maravilhoso também. Porque acabei abrindo a mente para a ideia de que a literatura indígena pode e deve compor a gênese literária na formação de pequenos leitores, dissertei sobre isso no TCC (que pode ser lido aqui).  E foi muito bom trilhar esse caminho. 

Portanto, a presença da Eliane ali na frente, e mais que isso suas palavras carregadas de ancestralidade, sabedoria e resistência, me lembram do quanto valeu a pena insistir em continuar buscando e conhecendo autores indígenas e ter feito o TCC sobre esse tema. Foi marcante e fundamental para minha formação e primeiros passos como professora. A literatura étnica precisa e deve estar presente não só nos currículos, mas em nossas práticas e vivências diárias em sala de aula. Mais do que instrumento de letramento, é alimento para a elevação da consciência de quem nasce em um país tão diverso culturalmente e tão plural como o nosso Brasil.

Uma mesa carregada de sabedorias

Quando a apresentadora Adriana Couto perguntou como a palavra chegara a cada um dos autores ali presentes, Eliane contou que para ela a palavra chegou com o olhar. Voltado para as histórias de suas avós, tias e mulheres de sua comunidade. Histórias que precisavam ser escritas e contadas.
O que faz muito sentido, pois a literatura começa na tradição oral. Ou seja, a palavra vem de dentro de nós e ter um olhar para essas narrativas que resgatam nossa ancestralidade, é ver a “voz do oprimido que as sai pelas unhas”, grito que emana das entranhas do ser para se fazer conhecer e ser visível. A fala que habita nosso território mais íntimo, apenas procura um espaço onde possa se manifestar livremente. Porque lugar ela já tem, que é dentro de cada um de nós. 

Ser protagonista da própria história, ser escritor e personagem da narrativa que vivemos, faz com que a literatura seja também um lugar ativo. Através de nossas narrativas, denunciamos as injustiças do mundo, compartilhamos nossas dores e nossos devaneios, e ativamos no leitor a empatia e a sensação de não estar só. A literatura ativista, torna-se então um lugar de falas que se encontram, fazem coro e gritam: resistência! A palavra que habita em nós faz da vida palco e dramatizamos cotidianamente a literatura que inventamos para nosso ser.  Seja ao som do despertador que acorda o corpo ou dos tambores que despertam a alma, vivemos a cada amanhecer um capítulo de nossa luta. E haja vida! Pois, sempre haverá história para contar! E onde houver opressão, haverá resistência!


O fim da tarde de sábado.

A última mesa do dia, "Fé na Palavra",  foi com dois escritores que eu ainda não pude ler, mas já estão na minha lista. Ainda mais agora, depois de ouvi-los e sentir o reverberar de suas palavras em ressonâncias com minhas inquietações, Maria Valeria Resende e Ronaldo Correia de Brito. A missionária e o médico, a fé e a cura tecendo caminhos para a libertação da palavra. No princípio foi o verbo e no fim, o que será?
A linguagem articulada, a fabulação, o poder de dizer o indizível nos torna humanos e a literatura nos faz ainda mais humanos, disse Maria Valéria. Demasiadamente comunicativos, pensantes, viventes. Filosofamos a dor e o amor, e a palavra registra os caminhos que na aventura chamada evolução. Se antes imprimíamos nossos devaneios em paredes lambuzadas de terra, cuspe e suor, hoje carimbamos a polpa das árvores encadernadas em folhas de diferentes gramaturas que carregam na leveza de linhas sem pautas, o peso de nossas falas gritadas de nossos silêncios. E haja escuta!

Ouvir é letramento. Aprendemos o mundo através das narrativas que escutamos com desejo e amor. Sábio é quem escuta, generoso é o que compartilha sua fala íntima com o intuito de se encontrar com o silêncio do outro. A leitura é viagem e encontro. Nas impressões marcadas, nas pistas deixadas, nas verdades camufladas nas entrelinhas, encontramos muitas vezes verdadeiros emplastos para nossas dores. É a medicina do verbo que vem curar a alma de corpos que jazem na labuta cotidiana. Olhar, ouvir e tocar eis a fórmula prescrita para quem precisa ir além do sobreviver. Olhar para o outro e ver-se a si mesmo enquanto um ser de potência mais ampla. Ouvir nossas vozes mais íntimas e aprender a escutar o próximo que nos chama. Tocar a empatia de quem está do outro lado e reverberar a crença de que podemos juntos atingir um ideal mais elevado. Literatura é também fermento que eleva a consciência da massa, ela só precisa estar no pão nosso de cada dia. Amém!


Outro momento marcante foi o encerramento no domingo

Começando pela apresentação do grupo de Jongo Mistura da Raça que foi linda! Tambores intensos evocando nossa poética para as escutas que vieram a seguir. A homenagem ao Mestre Laudeni foi emocionante, pois nem todos os mestres têm a chance de serem reconhecidos em vida. O canto, a dança e o caxambu, chamados que trazem toda a nossa ancestralidade a pulsar no peito. Dos tambores de África aos lamentos do parto e nascimento do Brasil, tudo é grito, dor, resistência e amor. Escutamos e sentimos, escutamos e nos encontramos em tu que também sou eu, e que se permitirmos podemos ser nós. Desatados e livres das correntes que tentam até os dias de hoje aprisionar nossa alma.

Depois dessa abertura, desse chamado e evocação, Mia Couto nos presenteou com sua presença, de corpo, palavra e alma. Um dedo de prosa tão gostoso que o tempo fluiu sem que nos déssemos conta, como toda boa prosa é capaz de fazer. Trouxe contigo sua simpatia, carinho e amor por nossa gente. Foi como encontrar um irmão que mora longe e chega de viagem nos contando sobre seu mundo, seus caminhos e suas dores que em muito se parecem com as nossas. Nos encontramos na dor e também no amor. Pois, todo sentimento de afeto é recíproco. Em certo momento da conversa ele disse: “As nuvens escuras que assombram o Brasil, nos preocupam em Moçambique”. Sua compaixão nos toca profundamente e a plateia de leitores e curiosos, aplaudiram fervorosamente. 

Neste momento me lembrei das palavras da produtora, “vocês vieram para ouvi-lo”, quando dava explicações ao público sobre o cancelamento da sessão de autógrafos. Sim, ali recolhida no lugar de escuta absorvi com cada palavra que emanava daquele ser que vinha nos prestigiar com sua presença, intensa, sincera e muito acolhedora. Uma presença luminosa, de estrela mesmo. De todas as falas com que Mia nos acolheu, duas me tocaram profundamente. 

A primeira foi quando contou um pouco sobre sua infância e sobre a origem de suas palavras, que vieram de seu silêncio. Isso bateu forte porque levei alguns anos da minha vida para descobrir esse lugar, o lugar do silêncio. Quando cheguei neste lugar sagrado, foi como se tivesse descoberto o maior paraíso dos mundos. Mas infelizmente não é fácil permanecer neste lugar, a labuta cotidiana confisca meu visto de tempos em tempos e preciso sempre o requerer novamente para voltar a este lugar onde posso escutar minhas vozes, me afastar dos gritos que me cercam e tentar compreender os sussurros dos que me amam.

Outro momento de intensidade desse encontro foi quando Mia comentou sobre sua relação entre o trabalho como biólogo e escritor. Ele disse que ser biólogo de certa forma o ajuda a “compreender as linguagens dos outros seres”. Neste momento lágrimas rolaram pelo meu rosto. Porque tenho uma profunda paixão pelos seres de fauna e flora, principalmente as árvores. Seres que venho tentando aprender sua linguagem e me apaixonando por eles cada vez mais. Tem dias que me sinto pássaro e quero sair por aí voando e descobrindo, mas na maior parte dos dias, me sinto árvore e quero ficar e sentir a profundeza do existir.

E claro que não posso deixar de mencionar que ao expressar  sua posição em relação a governos totalitários e sua repulsa a ditadura, Mia Couto fez coro com centenas de vozes que estavam ali, não só porque são leitores e apreciadores literários, mas porque sabem que produzir e defender a expressão literária será um dos grandes desafios deste momento trágico de retrocesso histórico que enfrentamos no Brasil. O escritor, o livro, a poesia são as primeiras ameaças aos chicotes de governos antidemocráticos. Porque é através da literatura que as ideias se manifestam, se proliferam e cavam as asas da liberdade nas costas do oprimido. Aliás liberdade foi a palavra que Mia escolheu para preencher o caderno que todos os escritores das mesas foram convidados a escrever durante toda a Flim. Palavra que dispensa explicação, pois em nossos silêncios compreendermos aquele grito.

Quando pensávamos que era o fim, veio a surpresa. Comovido pelo calor brasileiro (acho), o autor quis receber o público. Num gesto de generosidade e carinho, recebeu e autografou os livros de mais de 200 pessoas que esperaram para poder levar para casa um pedaço de papel com um rabisco de tinta feito pelo escritor.

Enquanto estava na fila observando as pessoas, eu me questionava por que ainda estava ali. O encontro já tinha sido intenso, flamejante, perfeito, o que mais eu buscava? Por que não estava satisfeita ainda? Ao mesmo tempo que me sentia meio ridícula, não conseguia conter o desejo de chegar um pouco mais perto do escritor que tanto admiro. Entrei na sala meio sem jeito e toda estabanada, deixando as coisas caírem no chão de ansiedade, mas de repente quando Mia Couto olho-me nos olhos e disse: olá! O tempo parou e ali naquele momento entendi por que eu quis tanto estar ali tão perto. Era para poder olhar nos olhos daquele que escreveu as palavras que tocaram minha alma desde a primeira leitura. E na transparência e compaixão daquele olhar tudo foi explicado, tudo foi entendido. A única coisa que consegui dizer foi: obrigada por transpor o teu silêncio!

E tudo isso durou poucos segundos que para mim serão eternos, pois cada vez que abrir o livro para lê-lo me lembrarei daquele olhar e será como se estivéssemos de frente um ao outro começando um bom dedo de prosa.

Enfim, esse foi um resumo de dois dias de Flim que pude participar, claro que muitas outras coisas aconteceram e tem mais escritores que quero comentar. Farei isso aos poucos.
A-ho!











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sábado, 31 de agosto de 2019

ENCONTRO - RODÍZIO LITERÁRIO

Foi com o intuito de incentivar a leitura e promover o acesso ao livro que surgiu a ideia do Rodízio Literário. A brincadeira é bem simples, um livro é escolhido, organizamos uma fila e o livro vai rodando de mão em mão entre os participantes. Quem termina de lê se encarrega de entregar para o próximo leitor da vez. Depois que todos (as) lerem, marcamos um encontro para conversar sobre o livro.

O livro escolhido para estréia do Rodízio foi: O Conto da Aia ( Margaret Atwood), e o primeiro encontro para trocar ideias e impressões sobre as experiências literárias, aconteceu com muita alegria e emoção. 

Um encontro divertido, com muito papo, leitura e trocas enriquecedoras.
Mulheres leitoras reunidas numa ensolarada tarde de sábado, no inverno tropical do litoral norte de São Paulo, conexão e sintonia ! 🍀🌷 Ah! E teve o delicioso café do espaço mais formoso da cidade o empório do café Mala e Cuia. ❤

Tudo perfeito! 


Obrigada a todas que participaram. Até o próximo! ;-)


🌵🙌📚


PS: Fotos do encontro no Instagram. Segue lá: @okarapoetica 







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domingo, 4 de agosto de 2019

O ENCANTAMENTO DAS ICAMIABAS




   Conta a lenda que existia na região Amazônica, próximo à foz do rio Nhamundá, um dos afluentes do Rio Amazonas, uma tribo formada somente por mulheres guerreiras, conhecidas como Icamiabas, “mulheres sem marido” ou “mulheres sem homens” em tupi. Eram mulheres independentes que andavam seminuas e tinham apreço pela liberdade e autonomia. Instruídas na arte da guerra, manejavam arco e flecha e enfrentavam destemidamente qualquer invasor. Toleravam a presença de homens somente uma vez por ano, quando realizam um ritual e convidavam guerreiros das tribos vizinhas para manter relações sexuais com o propósito de procriação. Se nascessem meninas eram criadas ali na tribo, se nascessem meninos eram enviados para as tribos vizinhas.  Compondo assim uma sociedade rigorosamente matriarcal e matrilinear, com mulheres rebeldes e revolucionárias que não aceitavam a lei dos homens.

   Em uma primeira leitura a lenda fascina e encanta, sobretudo quem se interessa pelos mitos de criação dos povos tradicionais e também quem tem interesse em conhecer histórias e lendas protagonizadas por mulheres genuinamente heroicas, onde suas virtudes não sejam restritas à beleza e seus objetivos de vida não estejam destinados a encontrar um príncipe encantado que salvará suas miseráveis vidas.

   Descobri as Icamiabas há muitos anos, quando comecei minha pesquisa sobre a Amazônia, pois o nome do rio Amazônas está relacionado com essa lenda e essa foi a primeira curiosidade que descobri e que me levou a uma certa obsessão pelo tema por alguns longos anos. Fui inevitavelmente seduzida pelo mito das mulheres guerreiras em terras tropicais. 

   As Icamiabas tornaram-se conhecidas no início da invasão do Brasil e a lenda começou a ser disseminada quando expedicionários europeus, liderados pelo espanhol Francisco Orellana, chegaram à região que hoje pertence à Amazônia, no ano de 1542. De acordo com relatos da época, quando o conquistador espanhol desceu o rio pelos Andes em busca de ouro, encontrou com as Icamiabas e junto com outros exploradores lutou com elas e foram derrotados. A belicosa vitória das  Icamiabas contra os invasores espanhóis foi tamanha que o fato foi narrado ao rei Carlos I, o qual, inspirado nas antigas guerreiras ou amazonas da mitologia grega, batizou o rio de Amazonas. No relato do padre dominicano Gaspar Carvajal, que integrava o grupo expedicionário, ele diz que a tropa fora advertida da existência dessas índias antes mesmo de entrar em contato com elas. E descreve esse contato com as guerreiras:

   “Nós mesmos vimos essas mulheres lutando como líderes femininas na linha de frente de todos os índios. As mulheres são muito claras e altas e usam cabelos compridos que trançaram e enrolaram em torno de suas cabeças. Eles são muito fortes e ficam completamente nuas, mas suas partes púbicas estão cobertas.” 

   Existem muitas lendas com mulheres guerreiras e destemidas em diversas culturas e o mito de uma sociedade só de mulheres fascina e não é novidade. Mas o que torna a lenda das Icamiabas incrivelmente instigante é que nas crônicas de viagem escritas pelo padre Gaspar, ele afirma que se encontram pessoalmente com elas. E por mais fantasioso e contraditório que seja, esse relato causou muito impacto na época plantando uma semente de dúvida que nos intriga até os dias de hoje. 

   Apesar da Amazônia ainda ser uma região majoritariamente desconhecida, hoje em dia temos muito mais conhecimento sobre a floresta e sobre os povos tradicionais do que há 500 anos atrás. Logo, a descrição que o padre faz das supostas guerreiras amazônicas levanta suspeitas sobre a veracidade dos relatos. Mulheres altas, brancas, musculosas, não se assemelham muito com os biotipos físicos dos povos que habitam aquela região. Teria sido uma linhagem extinta da qual ainda não se descobriu fatos relevantes?  Talvez. Ou os relatos dos europeus, sobretudo de Carvajal, eram apenas fantasias trazidas em sua bagagem, misturadas com histórias que ouviram dos índios e que acabaram tornando-se incentivos para continuar explorando a região? Afinal os relatos descrevem a existência de objetos de ouro e prata que as Icamiabas levavam consigo.

   Juntando os relatos da expedição europeia com a força da tradição oral, essa lenda atravessou séculos e ganhou diferentes versões, mas sempre mantendo os elementos principais da história, descrevendo a tribo das mulheres como uma sociedade rigorosamente matriarcal e matrilinear, que acrescidos de elementos fantásticos, exercem encantamento em que lê. Seja pelo simbolismo ligado ao arquétipo primitivo de feminilidade, da vida natural e da mulher procriadora e provedora da vida, ou pelo fascínio em desvendar os mistérios da Amazônia exótica, tão difundidos pelos europeus em suas crônicas, as Icamiabas se tornaram um grande mito amazônico. 

   Apesar de aqui no Brasil, sobretudo na região amazônica, pouco se saber a respeito delas, desde o surgimento das crônicas europeias sobre as lendárias guerreiras dos trópicos algumas expedições e estudos tentaram, em vão, provar que as Icamiabas existiram. Alguns desses estudos vão sugerir que poderiam ser mulheres de uma dinastia lunar que migraram da região da Asiática abrindo caminhos para o Novo Mundo. Outros vão descartar qualquer possibilidade de existência delas sugerindo que as mulheres avistadas por Orellana, eram mulheres indígenas de uma das tribos tradicionais do baixo amazonas, que lutavam ao lado dos homens e apenas naquele momento eles não estavam por perto. Gonçalves Dias, afirma em sua tese sobre o assunto que as diversas versões sobre a lenda das Icamiabas, eram narrativas fantasiosas, criadas para despertar a curiosidade alheia e estimular a busca de riquezas nos desconhecidos trópicos e rejeita veemente a possibilidade de existir uma sociedade só com mulheres, tanto aqui como na Grécia Antiga. 

   Todo esse debate com tantos argumentos interessantes coloca uma dúvida, será que foram os indígenas que influenciaram o imaginário dos europeus ou os europeus que influenciaram o imaginaram indígena? Uma vez que as narrativas da tradição oral se perpetuam muito rápido e sempre sofrendo alteração à medida que muda-se de narrador, fica difícil dar uma resposta conclusiva para a pergunta: As Icamiabas existiram?

   No Brasil do século XX, essa história foi vista com muita desconfiança e muitos historiadores vão sugerir que, apesar de haver relatos também de indígenas que contam em detalhes como viviam as Icamiabas, reforçando a versão dos espanhóis, é impossível afirmar a existência delas. 

   Entretanto, tem uma coisa que não podemos desconsiderar quando pensamos nesta questão: não é a primeira vez que descobrimos semelhanças entre elementos culturais dos povos nativos da américa com elementos culturais das civilizações antigas do médio oriente, desenvolvidos bem antes do contato com entre esses povos. Um exemplo clássico é o arco e flecha, artefato presente em diversas culturas ameríndias e também em culturas do médio oriente. Podemos citar também as pirâmides Incas, semelhantes em muitos aspectos às pirâmides egípcias. Outro exemplo que não posso deixar de citar é uma palavra do tupi-guarani que gosto muito e usei para nomear este projeto cultural, Okara.

   Okara é uma palavra que em tupi-guarani significa o centro da aldeia, onde se realizam as manifestações, as festas, os ritos, o lugar que é público em oposição a Oka. O que seria equivalente em português a palavra praça. Mas descobri recentemente que os gregos, por incrível que pareça, também tinham uma palavra que representava a mesma ideia: Ágora. Interessante, não? Portanto, a ideia de que a lenda das Icamiabas possa ter sido originalmente criada por algum povo da região amazônica e de certa forma alimentado as fantasias dos europeus, não é tão absurda assim.

   Pode ser que essas mulheres migraram do leste asiático e vieram fincar raízes nos afluentes do rio Amazonas, pode ser que índias fugiram de suas tribos e fundaram o famoso reino de índias guerreiras independentes, pode ser que existiu uma massacre numa tribo e os homens morrem e sobraram só as mulheres e pode ser que nada disso seja real e que jamais descobriremos a verdade.
Todavia, a busca por fatos que comprovem ou não a existência das Icamiabas já mobilizou expedicionários, pesquisadores, leitores e curiosos e no fundo rende uma intrigante aventura. Seja através de estudos e pesquisas já realizadas sobre o assunto, seja através de expedições na floresta Amazônica em busca das origens do mito das mulheres guerreiras sem marido ou até mesmo através da imaginação. Talvez um dia encontraremos uma resposta, talvez não.

   O fato incontestável é que a lenda existe! Enquanto literatura, faz conexão entre muitas das angústias e anseios do imaginário feminino. A história das mulheres guerreiras e libertárias, fascina, cativa e inspira. E hoje, na chamada primavera feminina, ganha força no coro de mulheres que se sentem profundamente atraídas pela ideia de libertação representada na lenda das índias guerreiras.

  Mulheres sem maridos, mulheres que manejam armas, mulheres guerreiras que se defendem sozinhas, que fazem sexo só com consentimento delas, que não são obrigadas a cumprir leis criadas pelos homens, independência, sonoridade, igualdade, revolução, tudo isso está presente e vivo na lenda das Icamiabas. Oras, é compreensível porque essa lenda tem se tornado tão latente e inspiradora em nosso imaginário. Trata-se da representação simbólica de uma utopia desejada pelas mulheres há milênios: Liberdade! Podem até dizer que os europeus tenham inventado essa história, mas hoje nós tomamos a palavra e recontamos do nosso jeito, de um modo que faça sentido para nós. Mário de Andrade reservou um espaço siginifcativo para elas em seu clássico Macunaíma. Assim como tantos outros escritores que desdicam páginas e páginas de seus trabalhos para mantê-las vivas em nosso imaginário literário.

   Ativistas dos direitos das mulheres, feministas e amantes da literatura fantástica, vão encontrar nessa lenda um diálogo inspirador. Toda simbologia de libertação contida dentro desta história, cria uma ponte entre a poética libertária contida na narrativa das indígenas guerreiras e a poética sedenta de revolução que emana de cada um de nós. Simplesmente um encontro fantástico. 

Icamiaba, tornou-se um símbolo de resistência, luta e libertação ao sistema patriarcal opressor que vivemos.

Icamiaba representa a força das mulheres que estão hoje na luta diária por uma existência mais humana e igualitária.

Icamiaba alimenta a desobrigação de se sujeitar às leis e a moral inventada pelos homens.

Icamiaba invoca a libertação dos padrões de comportamento e beleza impostos pelo patriarcado.

Icamiaba traduz uma potência dentro de cada mulher disposta a mudar os rumos do seu destino.

Icamiaba ecoa o grito silenciado há milênios e quer dizer:  Estamos juntas e não tememos a luta!!



Karina Guedes


* Ensaio publicado originalmente em  : https://www.recantodasletras.com.br/ensaios/6712349

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#okarapoetica
#lendasbrasileiras



domingo, 12 de maio de 2019

MÃES ARREPENDIDAS – uma outra visão da maternidade


Livro: Mães Arrependidas – uma outra visão da maternidade
Autora: Orna Donath
Ano: 2016
Editora: Civilização Brasileira

Sobre a autora:
Orna Donath é antropóloga, doutora em sociologia e pesquisadora na Ben- GurionUniversity de Negev, em Israel. Seu trabalho concentra na discussão dos direitos reprodutivos das mulheres e em estudos de gênero. Foi presidenta da Hasharon Rape Crisis Center – organização israelense cujo objetivo é combater a violência sexual -, da qual continua ser voluntária. É autora de Making a Choice: BeingChildfree in Israel (sem tradução no Brasil).

Sobre a obra:
O título deste livro é impactante e provocativo e o desenrolar da narrativa segue essa premissa, de nos impactar e prender a atenção a cada fato apresentado e analisado, a cada depoimento apresentado e a cada reflexão colocada. Talvez esse impacto se deva ao assunto tratado, que é muito comum a todas as mulheres e ao mesmo tempo polêmico para muitas de nós: a maternidade.

Depois de um enorme alvoroço causado por um debate na internet intitulado “#regretingmotherhood”, seguido de um artigo escrito pela autora sobre o assunto e publicado na revista Sings. Orna desenvolveu um estudo em Israel com um grupo de mulheres que se dispuseram a falar sobre o arrependimento que sentem em relação à maternidade. Importante ressaltar que Israel é o país com o índice de fertilidade mais elevado do mundo, 3 filhos a cada mulher. Enquanto entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) o índice é de 1,9 (EUA) a 1,4 (Europa). Dados que impressionam e nos levam a questionamentos sobre como se desenvolve a transição para a maternidade e porque surge o arrependimento.

 “Insisti em abordar essa situação guiando-me pelo pressuposto de que nosso campo de visão social é limitado, pois não nos deixa ver nem ouvir algo que existe, mas para o qual ainda não há uma via de expressão.”,diz Orna.

Para apresentar a questão do arrependimento e as conclusões de seu estudo a autora traça uma análise das trajetórias das mulheres-mães, desde os caminhos para a maternidade até os desdobramentos que apresentam ao logo da vida, sobretudo quando a mulher-mãe se torna avó.

“...a maior parte da literatura existente sobre os relatos das mães se concentra nos sentimentos e nas vivências de mães de bebês ou crianças pequenas, ou seja, no período logo após a transição para a maternidade. A relativa escassez de referências às experiências de mães de crianças mais velhas sugere que se dá pouco espaço às narrativas retrospectivas das mães ao longo dos anos.”, conclui a autora.

A maternidade pode ser uma experiência positiva e intensa para as mulheres que desejam vivê-la dentro desse âmbito do “querer ser mãe”. É comum ouvirmos relatos sinceros de sentimentos de realização, alegria e satisfação genuína por parte dessas mulheres. Porém, isso não significa que esse desejo e anseio por tal experiência seja compartilhado por todas as mulheres. É preciso compreender que existem mulheres que querem ser mães e mulheres que não querem, porém, o fato de existir mulheres que não desejam a experiência da maternidade não diminui ou invalida as experiências daquelas que se realizam nessa transição.

Tal experiência deveria ser uma opção, algo que se realiza mediante a uma escolha. No entanto, ao investigarmos os caminhos que levam uma mulher a tornar-se mãe, constatamos que nem sempre foi por que quis ou escolheu. Este é mais um fato que precisamos reconhecer, boa parte das mulheres que transitam para a maternidade o fazem mediante a uma decisão passiva, ou seja, fazem por falta de opção para escolher outro caminho ou por algum tipo de pressão, seja da família, da religião que segue ou da sociedade como um todo.  Ao mesmo tempo as mulheres que não desejam a maternidade, e têm o privilégio de fazer essa escolha, são criticadas e julgadas pelos mesmos núcleos.

Vivemos numa sociedade ancorada nos valores burgueses de família e propriedade privada, nesse contexto ser mãe é mais um papel a ser cumprido pela mulher. Ancorados em discursos rasos sobre a naturalidade da maternidade, da função biológica da mulher, da sobrevivência da espécie e da promessa de completude do ser feminino, a sociedade paternalista/capitalista em que vivemos praticamente obriga, direta ou indiretamente, mulheres a parir.

Para muitas mulheres ser mãe não é um desejo íntimo, mas dependendo do quão inseridas estão nesses valores, acabam se tornando mães simplesmente deixando-se levar por esse fluxo de pressão e opressão. Uma vez mãe, eternamente mãe. A maternidade é uma transição irreversível. A vida de uma mulher muda completamente para sempre, como uma marca, uma cicatriz que fica eternamente. Uma mulher que transita para a maternidade, morre como mãe e não como mulher.

Dentre essas mulheres que transitam maternidade por não ter meios ou condições de questionar ou se opor a pressão que sofrem para que se tornem mães, temos aquelas que se arrependem. Algumas tem coragem de admitir e enfrentam os dilemas e conflitos desse estado consciência. Outras, carregarão em silêncio mais esse fardo, o de ter que viver uma vida que não desejou e não poder dizer nada sobre isso. Afinal, o arrependimento é uma postura emocional cuja compreensão e aceitação é relativa e equivocada. Em certos contextos como no jurídico, por exemplo, espera-se que os réus se arrependam de seus crimes, já na maternidade o arrependimento é inconcebível aos olhos da sociedade que impõe a maternidade como uma obrigação da mulher e até mesmo a culpabiliza por essa transição em certas circunstâncias.

Um exemplo disso é constatado quando tratamos da responsabilidade da contracepção, que recai sempre sobre a mulher. Ignora-se a falta de informação sobre métodos contraceptivos - uma vez que educação sexual é um  tabu gigantesco em pleno século XXI ; as possíveis falhas desses métodos; a dificuldade de acesso a eles por parte de mulheres de baixa renda e que não possuem assistência médica nem para orientação, tampouco para acompanhamento; e o total descompromisso da maior parte dos homens em relação a tudo isso. O discurso moralista que ecoa e impera em nossa sociedade é “engravidou porque quis”, no entanto, podemos ver pelos exemplos citados que isso não é verdade. Muitas mulheres engravidam porque são condicionadas a fazê-lo.

Analisando todos esses aspectos que envolvem o destino das mulheres e o que a sociedade reserva para elas, a antropóloga Orna Donath desenvolve esse estudo profundo sobre um fato que até então tem sido obscurecido nas discussões sobre a maternidade, inclusive no movimento feminista, o arrependimento.  O livro “Mães Arrependidas – Uma outra visão da maternidade” traz ao centro das discussões uma realidade pouco reconhecida, a existência de mães que se arrependeram de terem se tornado mães. Através deste estudo realizado em Israel, a autora aponta para a diferença entre o desejo de ser mãe e o fato de ser mãe. E a incômoda existência do arrependimento.

Esse arrependimento não é um fenômeno individual que poucas mulheres manifestam devido a sua incapacidade de se adaptar a maternidade, trata-se de um alerta a toda a sociedade que se torna a grande culpada por esse sofrimento, afinal, a sociedade como um todo, empurra e persuade as mulheres à maternidade,mesmo que sem condições emocionais ou sociais de fazê-lo, sem oferecer políticas de reprodução que as permitam vivenciar a maternidade em sua plenitude.
“Se pensarmos nas emoções como maneira de se manifestar contra sistemas de poder, então o arrependimento é um alarme que deveria não apenas instar as sociedades a facilitarem as coisas para as mães, mas nos convidar a repensar as políticas de reprodução e nossas ideias sobre a obrigação de ser mãe.”, enfatiza a antropóloga.

Esse fato não pode ser ignorado, tampouco ocultado ou empobrecido por julgamentos moralistas. Existem mulheres que sofrem a maternidade e ao propor um estudo sério e comprometido em relação ao assunto, Orna dá voz a essas mulheres muitas vezes silenciadas. Seu livro é estruturado em capítulos organizados de forma a conduzir o leitor gradativamente a uma reflexão profunda sobre o tema. Ampliando as possibilidades de escuta dessas vozes que gritam o arrependimento da maternidade. Ou melhor, pelo reconhecimento e compreensão dessa emoção.Compreender o arrependimento como uma postura emocional legítima, é uma das propostas do livro. A outra, é de que a maternidade deixe de ser vista como um papel a ser cumprido obrigatoriamente pelas mulheres e passe a ser compreendida como uma relação entre a mulher-mãe enquanto sujeito de sua própria história, que reflete, analisa e avalia constantemente a relação que estabelece com o outro ser a quem chama de filho. Vista como uma relação, a maternidade tira um certo peso dessa experiência, o peso da dependência tanto da mãe quanto dos filhos.
Permitindo um desenvolvimento mais autêntico, pleno e furtivo para ambos, livre da ditadura dos padrões estabelecidos pela sociedade que assim como determina o papel de mãe, também determina o papel de filho.

O estudo apresentado no livro, juntamente com os trechos dos relatos das mulheres que participaram dele, compõe um tratado que convida a todos a uma reflexão profunda sobre a maternidade e nos instiga a pensar em possíveis caminhos para que ela não seja instrumento de opressão sobre as mulheres, mas apenas um caminho possível, nunca obrigatório. Talvez reconhecer a legitimidade do arrependimento, possa ser um início algum avanço nessa questão tão pungente para nós mulheres, que em algum momento da vida nos deparamos com o dilema:ser ou não ser mãe?

O livro divide-se em seis capítulos. A seguir um breve resumo dos assuntos abordados em cada um deles.

1- Os caminhos para a maternidade: O que a sociedade dita versus as experiências das mulheres.

Neste capítulo, são apresentados os diversos caminhos que levam as mulheres à maternidade. Os conflitos entre a maternidade naturalizada e a maternidade realizada, contrapondo o “caminho natural” à “liberdade de escolha”. Através dos relatos das mulheres que participaram do estudo,a autora aponta para o fato de que muitas mulheres não desejam ser mães e apenas se deixam levar pela corrente. Os desejos e motivos para transitar para maternidade são diversos e muitas vezes ocultos, o que leva mulheres a consentirem ser mães, porém sem vontade nenhuma, o que ela chama de decisão passiva. Ao fazer uma análise mais concreta e com base nas razões das mulheres que participaram do estudo, dando eco a suas vozes, a autora também desmistifica a ideal neoliberal/capitalista do poder de escolha.

2- As exigências da maternidade: Aparência, comportamento e sentimentos que as mães deveriam ter.

Os relatos das mulheres que participaram do estudo nos dão uma pequena amostra do quão pesado o fardo da maternidade pode ser, como as cobranças e julgamentos para que sejam boas mães e para que cumpram determinado papel padronizado e imposto pela sociedade paternalista/machista em que vivemos. São apresentados também os sentimentos ambíguos que a maternidade pode gerar, tanto como amar os filhos, detestar os filhos ou apenas detestar a maternidade. A partir dessas constatações a autora aprofunda a distinção entre arrependimento e sentimentos de ambivalência.


3- Mães arrependidas: Se eu pudesse não ser mãe de ninguém.

O arrependimento está ligado à nossa noção de tempo e memória, posto como uma postura emocional que nos coloca a olhar para traz, rever, reavaliar, reconsiderar. Comportamento desvalorizado na sociedade contemporânea onde o pensamento neoliberal considera que progresso é um caminho em linha reta, sempre olhando para frente e nunca para trás. Neste contexto, o arrependimento da maternidade é considerado em nossa sociedade como uma postura emocional ilícita para as mães que tem filhos e ao mesmo tempo é utilizado como condenação prévia para aquelas que não desejam ser mães.
Ao fazer uma análise de suas próprias trajetórias, algumas mulheres se arrependem e consideram um erro terem engravidado. Porém arrepender-se da maternidade, não significa arrepender-se dos filhos. Muitas mulheres vão concordar com a seguinte afirmação “amo meus filhos e detesto a maternidade”.  Neste capitulo são apresentados as vantagens e desvantagens da maternidade e como as mães que se arrependem lidam com essas questões.

4- Experiências de maternidade e práticas de arrependimento: Viver com um sentimento ilícito. 

A maternidade traz uma grande mudança na vida de uma mulher, uma mudança irreversível. As transformações que a maternidade pode trazer, tanto podem estar no campo emocional da satisfação e da realização, assim como pode estar no campo da frustração e do arrependimento. A maternidade é irreversível e torna-se traumática a medida que as mães vão tomando consciência do quanto suas vidas não lhes pertencem mais. A prometida sensação de completude da maternidade é ocupada por uma sensação infinita de comprometimento e responsabilidade que se estenderá mesmo depois dos filhos estarem crescidos. Neste capítulo, a autora expõe as diversas práticas que se originam do conflito entre ser mãe e desejar não ser, como o suposto conflito entre o desejo de não ter filhos e o amor pelos filhos reais.

5- Quem é você, mãe? As mães arrependidas entre o silêncio e o discurso.

A consciência do fardo da maternidade traz vários dilemas e desafios. Dentre eles, a necessidade de compartilhar seus sentimentos e o conflito com sua voz silenciada pela sociedade que não deseja ouvir seu arrependimento, suas confusões, suas angústias. A responsabilidade para com a saúde emocional dos filhos e o medo de que se sintam indesejados, se confronta com a vontade de ser transparente e honesta com os próprios sentimentos. Neste capitulo é apresentado uma investigação mais profunda da consciência desperta das mães arrependidas. E como lidam na prática com esse despertar.


6 - Mães- sujeitos: Investigar o estado das mães por meio do arrependimento.

A investigação mais profunda do arrependimento da maternidade aponta para dois significados importantes, que devem ser considerados antes de criticar ou condená-lo. Primeiro, a satisfação com a maternidade não tem a ver somente com as boas condições materiais para vivê-la. Mulheres que vem de classes economicamente abastadas, compartilham dos mesmos conflitos e sentimentos que mulheres de classes de baixa renda.  As conclusões do estudo também questionam as premissas de que o arrependimento surge quando as mulheres não conseguem conciliar a carreira profissional com a maternidade. Este capítulo também sugere que para uma compreensão mais ampla da maternidade, precisamos deixar de vê-la como um papel a ser cumprido pela mulher e começar a compreendê-la como uma relação na qual as mães sejam sujeitos que examinam, pensam, avaliam e buscam equilíbrios.

Bem, o que mais posso dizer? Amei este livro assim como transitar pelas reflexões que ele traz.
Espero que gostem também, boa leitura!

Se já leu, deixe seu comentário, bora somar ideia. Abraço.

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