terça-feira, 26 de janeiro de 2021

A SUCESSORA X REBECCA e a questão do plágio.


 Sobre a polêmica que envolve o romance Rebecca e A sucessora, deixo aqui algumas observações a respeito para refletirmos juntos. Longe de ser um parecer ou um julgamento, trata-se apenas da opinião de quem leu intensamente os livros.

    A primeira impressão que tive foi de que apesar de terem elementos muito parecidos, são histórias diferentes. O desenvolvimento de cada uma delas é totalmente diferente e o desfecho também. Ambas são ótimas histórias, que trazem questões interessantes sobre determinada época do Brasil e da Inglaterra, mas que são épocas diferentes também, assim como as questões levantadas por cada narrativa. Quanto mais eu tentava ver semelhanças, mais diferenças encontrava. 

    Para ter outras referências, li também Encarnação de José de Alencar que foi escrito em 1893, ou seja, bem antes dos dois romances citados. O que achei mais incrível é que para mim pareceu haver mais semelhanças entre Encarnação e Rebecca, do que entre Rebecca e A sucessora. O final então é surpreendente, as duas histórias (Encarnação e Rebecca) terminam com um incêndio da casa, cena icônica e muito simbólica.

    Assim como muitos leitores fiquei intrigada com a semelhança desses romances e fui investigar mais a fundo a questão e para minha surpresa descobri que "o fantasma da segunda esposa" é um tema recorrente em romances do séc. XIX e começo do séc. XX, e acontece muitas semelhanças entres outros livros mais antigos além desses, e curioso é que geralmente são histórias escritas mais por mulheres do que por homens. Esse é um bom tema a ser explorado e investigado, mas para isso é necessário dispor de tempo para ler tantas obras e estudá-las com cuidado, para não correr o risco de fazer julgamentos precipitados, supérfluos e rasos. Infelizmente não disponho desse tempo agora, mas deixarei essa pista para ser seguida em outro momento mais adiante.

    E sobre a suposta questão do plágio, sinceramente acabei me esquecendo dela. Porque ao mergulhar na leitura desses três livros de temática tão interessante, várias questões sobre relacionamentos, o papel da mulher na sociedade delimitado pelo patriarcado, a instituição casamento, a hipervalorização da maternidade, independência feminina, vilania, feminicídio, etc. , acabaram sendo muito mais interessantes de pensar e debater do que descobrir quem copiou o que de quem. Para mim isso se tornou irrelevante no final das contas. 

    Acredito que a literatura é acima de tudo um diálogo.  Uma troca de inspirações, ideias e inovações. Acho que não cabe a mim, mera leitora sentenciar quem está certo ou errado nessa questão do suposto plágio. A própria Carolina Nabuco, mesmo tendo todas as condições de encarar um processo jurídico e reivindicar alguma coisa a respeito, desistiu de fazê-lo. Talvez essa questão nem fosse tão importante para ela, como tem sido para muita gente que descobre o fato. Ou talvez, depois de muitos anos tenha se arrependido de não ter levado o processo adiante e por isso resolveu denunciar o ocorrido em sua autobiografia. Provavelmente nunca saberemos. Então, penso que levantar julgamentos, determinar sentenças, ser advogado ou juiz de uma escritora ou de outra, acaba nos tirando a atenção daquilo que realmente importa enquanto leitores, o prazer de ler as obras.

    Caso você tenha chegado a esse post e não leu ainda as resenhas que fiz de cada um dos livros acima, clica no nome de cada livro para ler minhas impressões. Fique à vontade para comentar e compartilhar as suas.

ENCARNAÇÃO

A SUCESSORA

REBECCA

Inté! Boas leituras para nós!


Karina Guedes

@okarapoetica

REBECCA - Daphne Du Maurier

Rebecca, é um romance escrito por Daphne Du Maurier  (publicado em 1939), escritora inglesa que se tornou conhecida no mundo inteiro pelo seu talento para contar histórias impactantes e também por ter tido algumas de suas obras adaptadas para o cinema por grandes diretores como Alfred Hitchcok.

    A história é narrada por uma personagem sem nome, que trabalha como dama de companhia para uma rica senhora norte-americana, Mrs. Van Hopper. E durante uma viagem ao sul da Itália,  a narradora conhece por acaso Maxim Winter, um rico viúvo por quem se apaixona depois de passar quinze dias na companhia dele em passeios românticos, quase secretos. Maxim a pede em casamento para o choque de Mrs. Van Hopper e depois de uma lua de mel pela Europa, eles vão morar na Inglaterra, na famosa mansão Menderley, propriedade da família de Maxim Winter. E ali a protagonista/narradora vai viver dias bem tumultuados na tentativa de se tornar a nova Mrs. Winter. Pois, a finada esposa Rebecca era uma mulher muito admirada e adorada por todos a sua volta e sua presença marcante está em todo lugar, assim como nas lembranças daqueles que a conheceram que e frequentaram Menderley em seus anos gloriosos. Assombrada por essa presença e também pela antipatia da governanta Mrs. Denvers, a protagonista enfrenta desafios diários para tentar agradar o marido e ocupar um lugar na alta sociedade que agora frequenta, mas sente não ser legitimamente o seu. 

    Até aqui não temos muitas novidades, lembra o velho conto da  gata borralheira adaptado. Mas o que vai tornar essa história diferente de outras que também abordam a temática da segunda núpcias de um homem rico, é o desenvolvimento que Daphne Du Maurier cria para ela. A autora transforma esse suposto conto de fadas já batido numa história apavorante, cheia de mistério e com um final sinistro. Talvez por isso tenha se destacado dentre tantas outras histórias com temática semelhante. 

    Daphne é uma autora bem descritiva e sua narrativa nos leva a mergulhar no ambiente da história, que ora é de suavidade, ora de tensão e mistério. A maneira como descreve Menderley, com todos os seus jardins, bosques e costa faz com que a mansão nos pareça uma personagem tão viva como os demais. Esse é outro ponto muito positivo de sua narrativa, ela é envolvente e faz você mergulhar na história, principalmente se você gosta de histórias com ênfase em paisagens. Ela vai do lusco-fusco de uma alvorada de primavera, ao luz do luar do verão numa noite de lua cheia, descrevendo tudo com detalhes.

    Achei bem diferente da maioria dos romances do séc XIX que eu estava habituada ler. Esse livro geralmente é classificado como um romance gótico e de fato tem muitos elementos desse gênero, o que faz de um enredo aparentemente simples, um instigante suspense. O que mais gostei na narrativa,  foi justamente as viradas de enredo, que dão bastante emoção para história alimentando a curiosidade pelo desfecho, o que nos leva a ler com certa velocidade. Certamente, uma narrativa bem elaborada com personagens bem construídos. 


POSSÍVEIS LEITURAS

    Deixo aqui algumas observações que acho que valem a pena prestar atenção nessa história, lembrando que essa é a minha leitura, cada um pode e deve fazer a sua. Prometo me esforçar para não dar spoilers, mas alguns pontos são inevitáveis de se comentar para poder expor minha opinião sobre a obra.

    Apesar dessa história, ser vendida como uma história de amor, particularmente não vi bem assim. Pra mim trata-se de um belo exemplo de uma relação abusiva, com direito a crime passional e tudo mais. É muito mais trágica do que romântica, um bom thriller. 

    Desde o começo me incomodou muito a figura do marido. Cara estranho, rude, mau humorado, quase um bipolar. Suas mudanças repentinas de humor, fazem dele uma figura sinistra desde o início. Fica claro que há algo de muito errado com ele e no final confirmamos isso. Mesmo considerando que talvez esses traços da personalidade poderiam ser pistas deixadas propositalmente pela autora para nos fazer entender lá no final as atitudes dele, me incomodou bastante durante a leitura. Tive raiva dele do começo ao fim. Lia e pensava, que cara insuportável! Quem aguentaria casar um tipo desses? Aff! 

    Tem outro detalhe sobre o personagem Maxim de Winter que observei depois de ver os dois filmes adaptados desse livro. Ele não foi tão bem representado no cinema em nenhuma dessas versões de Rebecca. Acho que sua personalidade obscura foi um pouco suavizada, até mesmo no famoso filme do Hitchcock, que mudou consideravelmente o final da história. O que Maxim faz e que o torna esse ser esquisito, não foi por acaso como é mostrado no filme. Ele tem consciência do que faz e é movido por um ódio reprimido. Tanto que no final do livro ainda diz que está satisfeito pelo que fez e se tivesse que fazer novamente, o faria do mesmo modo. O cinema (versão de 1940 e a recente de 2020) suavizou muito esse ponto.

    E não se trata aqui da velha questão filme x livro, até porque pra mim essa questão não existe, cada linguagem tem seus meios de nos contar uma história. Mas é inevitável observar essas diferenças e analisar as soluções encontradas para elas. A meu ver a solução que Hitchcock encontrou para explicar os atos de Maxim, foi uma solução machista e que na minha avaliação compromete a interpretação da história. 

    Agora sobre a personagem narradora que não tem nem nome, mas vamos chamá-la de Madmoiselle, como se referem a ela no livro. Quem é ela? É uma moça pobre, órfã, sonhadora e excessivamente imaginativa. Tudo ela imagina, antecipa, fantasia...é insuportavelmente insegura, ingênua e carente.  Uma parte desse excesso de insegurança pode até estar relacionada com o fato de ser muito jovem, uma vez que insegurança e juventude tem tudo a ver, mas ainda sim chega a ser insuportável o quanto essa insegurança a torna dependente emocionalmente de Maxim, resultando numa relação abusiva. Pois, ele a subjuga o tempo todo, tem atitudes machistas e egoístas, só pensa em seus próprios problemas. Valoriza demais a juventude, a ingenuidade numa mulher e critica posturas femininas mais firmes, mais maduras. E o que nossa protagonista faz? Aceita tudo isso e ainda pede perdão, numa postura completamente submissa.  Eu particularmente, não chamaria isso de amor. Mas o momento em que ela decepciona mesmo é quando se torna cúmplice de Max em dado momento da história. O que nos leva a observar o contraponto entre as “esposas”. Já que Rebecca,  a finada, era muito madura, decidida e de personalidade forte, o oposto de Madmoiselle, enfrenta Maxim.

    A personagem Rebecca, que dá nome ao romance e que só conhecemos através dos relatos de outros personagens, no começo nos parece apenas mais uma típica mulher da alta sociedade. A senhora de Menderley, cujo bom gosto e simpatia a tornaram adorada e admirada por todos. Se vestia muito bem, muito elegante e organizava bailes memoráveis, uma anfitiã de alto nível. Porém, é no relato de Mrs. Denvers e na confissão Maxim, que vamos conhecer Rebecca mais detalhadamente. E vamos compreender porque ela era essa mulher tão intensa e sedutora, que nem a morte e nem o tempo apagou sua presença.

    E aqui coloca-se uma questão interpretativa bem interessante do enredo, pois se você olhar para Rebecca com os olhos de Mrs. Denvers conhecerá uma mulher muito à frente de seu tempo e da hipocrisia da sociedade que a cerca. Revelando-se uma mulher de personalidade forte, intensa, sensual e decidida a viver sua sexualidade. E sendo consciente do lugar que a sociedade reserva às mulheres, decide zombar na cara da burguesia inglesa, usando Maxim e Menderley para isso. Uma mulher que faz o que quer, não se prende às convenções sociais, é ousada como muitos homens se julgam no direito de ser. 

    No entanto, se olharmos para Rebecca com olhos de Maxim, ela não passa de uma manipuladora cruel, interesseira, autoritária. E talvez, justamente por isso tenha morrido, por ser uma mulher que ousava tomar decisões e desafiava e atacava o marido. 

    Há quem julgue Rebecca e há quem a ame. Essa provocação plantada no enredo, dá um tom bem desconcertante na história. Se foi proposital, ou não, fica difícil saber. Mas ao ler com cuidado, a enxergamos e isso apimenta a leitura. 

    Esse tom provocativo no acompanha do começo ao fim, numa linguagem  que apresenta certas formalidades nos diálogos devido à época e posição social dos personagens principais, porém fluida.  E para nos prender a autora cria situações bem conflituosas, parte delas como fruto da imaginação de Madmoiselle, e parte como pistas para os mistério que envolve Rebecca. E como todo bom suspense, tem um final surpreendente. 


REFLEXÕES PARA ALÉM DO FANTASMA DA SEGUNDA ESPOSA

    Esse livro traz um enredo bem construído, cheio de detalhes e questões que servem de gatilho para vários debates sobre a condição das mulheres ontem e hoje, sobre família e propriedade. Ficaria difícil comentar todos os pontos relevantes numa resenha só, portanto coloquei aqui o que achei mais impactante na leitura. Mas obviamente, é possível extrair muito mais. O que torna essa leitura interessante pra além da diversão, nos fazendo pensar e discutir questões sociais que tangem nossa realidade. Ler por diversão é muito bom, mas ler e refletir os temas da história é melhor ainda.

    Bem e daí você pode estar pensando, ah mais tudo bem estamos falando de uma história contada no século passado, hoje em dia as coisas não são mais assim. Só que não. E é justamente por isso, que precisamos ler e discutir Rebecca. 

    Aparentemente, as questões e valores colocados na história são do século passado, meras  representações dos costumes e do papel da mulher naquela época. Porém, essa visão do papel da mulher na sociedade vem mudando, devagar mas vem, afinal já não se pode dizer que o papel da mulher é servir ao marido, como se dizia há séculos atrás. Por esse prisma, se nos atentarmos para as questões mais profundas do enredo como dependência emocional, dependência financeira, casamento de aparências, liberdade sexual feminina, o dilema do divórcio e feminicídio, estaremos tratando de questões bem atuais. É claro que no livro tudo isso é bem romantizado e floreado, tanto que essa história é vendida até hoje como “uma deliciosa história de amor", quando não é. Por isso, precisamos ler, discutir e rever nossos conceitos sobre esses temas e talvez esse tipo de romance possa ser uma boa porta de entrada para debates mais profundos.


OBSERVAÇÃO

Sobre a suposta questão do plágio que Daphne Du Maurier teria feito do livro A Sucessora de Carolina Nabuco (resenha aqui) e que ela comenta em seu livro de memórias (Oito décadas), escrevi outro texto somente sobre isso, que você pode LER AQUI.

Nesta resenha fiz questão de dar ênfase a minha leitura e  interpretação da obra Rebecca, por ter encontrado nesse romance muitos temas pertinentes para reflexão e debate sobre muitas questões sociais tão pungentes em nossos dias. 

Recomendo também ler a resenha de Encarnação, de José de Alencar (resenha aqui).


SOBRE A AUTORA

Daphne du Maurier nasceu em Londres, Inglaterra, a  de maio de 1907. . Filha de Gerald Du Maurier, famoso ator inglês, e neta de George Du Maurier, escritor de renome, Dapnhe foi criada e educada dentro do lar, segundo os padrões comuns às famílias abastadas da época. 

Aos dezoito anos viajou para Paris, onde permaneceu durante seis meses, aprendendo a língua e literatura francesa. Na adolescência, escrevia contos e poemas, revelando influências de Katherine Mansfield, Mary Webb e Guy de Maupassant.Ao longo de sua carreira, escreveu mais de vinte obras, entre as quais se destacaram: Jamaica Inn (A Pousada da Jamaica), em 1936; Rebecca, em 1939, The King's General (O General do Rei), em 1946; e The Parasites (Os Parasitas), em 1949, dentre outros.

Nos últimos anos de vida, deixando de lado os temas basicamente sentimentais, procurou desenvolver outros gêneros. Assim, dentro da ficção científica, escreveu o conto The Birds (Os Pássaros), onde as aves se organizam e questionam o domínio do homem sobre a natureza, e The House on the Strand (O Espião do Passado), onde utiliza o tema da viagem através do tempo.

Grande parte da sua obra foi adaptada para o cinema, principalmente pelo mestre do suspense Alfred Hitchcock, que filmou Jamaica Inn, The Birds e Rebecca , pelo qual ganhou um Oscar de melhor argumento adaptado.

Daphne Du Maurier foi nomeada Dama do Império Britânico.

Karina Guedes
@okarapoetica

A SUCESSORA - Carolina Nabuco

A Sucessora, romance escrito por Carolina Nabuco e publicado em 1934, que além de nos contar uma história de duas pessoas apaixonadas, uma moça do campo e um viúvo da cidade que são assombrados pela imagem da primeira esposa dele já falecida, traz como pano de fundo um belo retrato do Brasil do início do séc. XX, narrado com leveza e com certo caráter intimista.

    Neste livro acompanhamos a história de Marina, uma moça na casa dos 20 anos que viveu a vida toda na fazenda de Santa Rosa, interior do Rio de Janeiro, onde conhece Roberto que viria a se tornar seu marido. Ele é um industrial da cidade do Rio de Janeiro, viúvo recente e viaja para Santa Rosa a negócios. Ao se conhecerem se apaixonam e se casam rapidamente. Então, Marina se muda para a bela casa dele no bairro do Paissandu. E essa mudança vai ser um muito perturbadora para Marina, que se vê diante do desafio de enfrentar a memória da falecida, Alice. 

    Logo na chegada ao palacete se deparam com o quadro da finada esposa, o que causa certo desconforto aos recém casados. Roberto se desculpa pelo mal entendido, pois havia dado ordens para que o quadro fosse retirado, mas não se desfaz totalmente dele, apenas o remove para uma sala menor, menos usada, afinal o quadro fora pintado por um famoso artista francês, sendo muito valioso. 

    Acontece que é nesta sala que Marina acaba passando a maior parte de seu tempo, ela ocupa as estantes vazias com seus livros trazidos de Santa Rosa e faz desta sala seu canto particular. Além do quadro, Marina percebe a presença de Alice nos objetos da casa e nas memórias de todos que a conheciam e assim descobre que Alice era uma mulher, bonita, inteligente, exuberante, com muito traquejo social, chique, muitos amigos, excelente anfitriã e tinha uma presença marcante. E esse perfil de mulher tão perfeita, começa a gerar nela certa insegurança. Afinal, Marina é o oposto disso. Ela é uma moça tímida do campo, que embora sendo de uma família abastada, tinha hábitos simples. Apreciadora de literatura, da beleza da natureza, dos costumes do campo e suas festas populares, como a festa junina por exemplo. Ao constatar a grande diferença entre ela e Alice, começa a tecer as comparações e notar o quanto as pessoas esperam que ela seja como Alice e se sente muito mal em relação a isso. Aos poucos começa criar uma certa obsessão pela figura da finada e o quadro exposto na salinha alimenta dia após dia essa obsessão. O que a leva a um desequilíbrio psicológico que culmina numa crise existencial intensa que pode comprometer seu casamento. 

Uma história leve, apesar da personagem principal entrar num profundo poço de tormentos psicológicos causados pela sua própria insegurança, mas a narrativa é fluida, sem grandes reviravoltas, ou grandes surpresas no final. A linguagem é elegante e objetiva, típica dos romances deste período, com certa erudição na fala de alguns personagens mais letrados. Apresenta uso de vocábulos e adjetivos comum da época em que foi escrito.


ROMANCE PSICOLÓGICO E INTIMISTA

    No começo parece só mais uma história sobre uma jovem em busca de um grande amor e que depois de casada,  tenta cumprir, o que naquele tempo era considerado uma das principais obrigações da mulher no casamento: agradar ao marido. Tarefa que para muitas mulheres pode parecer exagerada ou até mesmo injusta, mas que tanto naquele tempo como nos dias de hoje ainda é uma prática muito enraizada na cultura machista em que vivemos. 

    Como percebemos isso na história? Bem, tudo o que Marina faz é pensando em agradar Roberto e mostrar que pode ser tão competente quanto a falecida, que inclusive deixa um caderninho com tudo anotado, para que sua sucessora não falhe na missão. Roberto por sua vez, em vários momentos demostra aparentemente ter superado a morte de Alice. Inclusive, não se agrada quando Marina tenta imitá-la. Ele se diz ciente da diferença entre elas e que a ama em seu modo de ser. Porém, em vários momentos percebemos que ele sutilmente impõe seus gostos e sua cultura. É como se Marina tivesse que se adaptar a ele e não o contrário. Ao longo de toda a história acompanhamos Marina tentando se adaptar ao mundo de Roberto, fazer-lhe as vontades, sofrendo as comparações com a falecida e é justamente essa pressão que vai levá-la ao surto psicológico e dar vida a um retrato de parede. 

    A partir desse momento todo dilema de Marina gira em torno dessa obsessão que ela cria em relação ao quadro da falecida. Fazendo com que sua  antagonista seja não exatamente a Alice, mas sua própria insegurança e esse  sentimento de inferioridade que lhe surge durante esse processo  de adaptação à vida matrimonial culmina em esgotamento emocional. E é aí que o quadro da falecida, vai encarnar todas as suas angústias e ser seu grande inimigo. Um inimigo que na realidade não faz nada. Fica só pendurado na parede. Qualquer ação relacionada a ele é  movida pelas emoções de Marina.

        Toda essa pressão faz com que ela se esforce para ser a nova dona da casa, mas muitas coisas incomodam profundamente a protagonista, como por exemplo a superficialidade dos costumes da sociedade urbana e industrial na qual fora inserida através do casamento. Isso lhe provoca um profundo tédio. E mesmo sendo mais bonita, mais jovem e mais inteligente do que a falecida, Marina se deixa abater por comparações. Ela não consegue ver que a profundidade de seu caráter se sobrepõe a superficialidade da imagem de Alice, que se apresenta apenas como o mais bem moldado fetiche burguês de mulher ideal. Marina é superior, mas não vê isso e se esgota numa crise profunda. 

    A atitude que ela vai tomar para não padecer de vez, é bem inusitada para histórias desse gênero. Achei isso muito positivo no enredo. Ela dá um "basta" e o fato de estar disposta a encarar a separação e a solidão, demonstra que pode manter em si um resquício dessa inclinação para liberdade que o casamento aparentemente lhe roubara. Se ela vai levar isso adiante ou não, não posso contar para não estragar a leitura de vocês.

    A única coisa que realmente não gostei foi o final, que me decepcionou um pouco. Na tentativa de expor o que se esperava da mulher naquela época, a autora enfatizada na narrativa a visão burguesa e patriarcal do papel da mulher na sociedade. O que na minha avaliação foi ruim, porque Marina desde o início apontou várias vezes para uma visão mais progressista do mundo e da vida, e a força com que ela lutava contra os valores contrários aos seus durante toda a história, me levou a criar uma expectativa de que no final ela triunfaria. Claro que de uma visão patriarcal do papel da mulher Marina "venceu" Alice. Mas para mim não, ela perdeu. Pois, seu intelecto, sua capacidade analítica, sua autonomia de pensamento e auto superação era sua verdadeira superioridade em relação a Alice e nada disso foi utilizado para dar a heroína do romance um final que ela, a meu ver, merecia. 


POSSÍVEIS LEITURAS

    Um lado interessante deste romance é a representação do Brasil do começo do século XX. Um Brasil que contrapunha campo e cidade e que de um lado vivia o declínio das fazendas após a abolição da escravatura e do outro uma ascensão das cidades e do desenvolvimento das indústrias. Marina representa o velho Brasil, enquanto Roberto representa o que foi chamado de novo Brasil, o país que emergia economicamente naquela época e que trazia essas marcas nos contrapontos culturais. 

    A burguesia urbana da época era muito apegada a estética europeia, sobretudo a francesa. A França estava na moda no Rio de Janeiro da década de 20. Isso vai ser muito bem retratado nos costumes do círculo social de Roberto. A preocupação com a moda, as várias reuniões, visitas, festas, jantares, ser bem visto na alta sociedade era estar bem alinhado com os valores europeus daquele tempo. Marina sendo uma moça do campo, letrada e muito apegada as suas raízes populares vai criticar tudo isso, todo esse burburinho pró Europa. Ela prefere discutir literatura à modas do momento. E toda essa atmosfera em que se vê obrigada a se adaptar devido ao seu casamento, vai contribuir para o desenvolvimento de sua crise psicológica no decorrer da história.

    A festa junina e o carnaval são dois momentos muito marcantes na narrativa e que de certa forma também ilustram esse contraponto, entre campo e cidade. E no carnaval do Rio, é evidenciado os vestígios do Brasil escravocrata, quando os personagens principais vão ver o desfile do chamado blocos dos pretos. E ali tem-se um dos momentos curiosos da história, pois os personagens usam uma linguagem carregada de racismo para se referir aos negros, uma linguagem que pode nos parecer pesada e pejorativa hoje em dia, mas que era comum. Não sabemos esse recurso foi por mera expressão, na tentativa de apenas retratar os vocabulário da época ou se a autora teve uma intensão fazer uma denúncia. Carolina Nabuco era filha de um abolicionista, mas é preciso lembrar que ser abolicionista não significa ser necessariamente um admirador ou ter o mínimo de compaixão pelos negros e sua cultura. A historiografia nos mostra que havia outro interesses em jogo no desfecho da abolição  e mesmo os escravizados sendo libertados, não houve nenhum esforço para a inserção das pessoas negras no mercado de trabalho e na sociedade. Portanto, menos para mim ficou essa incógnita em relação a essa passagem do texto.

    Toda essa atmosfera de contraste e contradições torna esse romance um verdadeiro registro histórico do Brasil da década de 20. Trata-se também de uma narrativa fluida, direta sem muitos rodeios ou descrições intermináveis. Esse é um mérito da autora, ela é objetiva e isso faz com que a leitura seja prazerosa.


CURIOSIDADES
  •  A obra foi adaptada para televisão em 1978 , e tinha Suzana Vieira e Rubens de Falco no papel do casal Marina e Roberto.
  •  Sobre a suposta questão do plágio que Carolina Nabuco comenta em seu livro de memórias, em relação ao romance Rebecca de Daphne Du Maurier (resenha aqui), comentei em outro texto somente sobre isso, que você pode LER AQUI
Nesta resenha de A Sucessora fiz questão de dar ênfase a interpretação da obra, coisa que é meio difícil encontrar para ler, pois a maioria das pessoas gastam quase que a resenha inteira falando da questão do plágio e não se atentam a apreciação da obra.

Recomendo também ler a resenha de Encarnação, de José de Alencar (resenha aqui).

SOBRE A AUTORA

Carolina Nabuco,  (Rio de Janeiro, 9 de fevereiro de 1890 — 18 de agosto de 1981) foi uma escritora e tradutora brasileira. Era filha de de Evelina Torres Ribeiro Nabuco e de Joaquim Nabuco, escritor, diplomata e deputado geral do Império do Brasil, co-fundador da Academia Brasileira de Letras. Carolina passou boa parte da infância em Petrópolis, mas a adolescência foi nos Estados Unidos, onde o pai, era embaixador do Brasil.

Em 1928, publicou seu primeiro livro, a biografia de seu pai, Joaquim Nabuco, livro premiado com o Prêmio de Ensaio da Academia Brasileira de Letras. Trabalhou como tradutora e escritora, tendo uma vida bastante discreta, sem nunca ter se casado ou tido filhos.
Em 1978, Carolina recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.

É considerada uma das grandes escritoras da literatura brasileira.


Karina Guedes
@okarapoetica

ENCARNAÇÃO - José de Alencar

  Encarnação é o último romance escrito por José de Alencar, publicado postumamente em 1839 e conta a história de Amália, moça jovem, bela, que desfruta muito bem do frescor e prazeres da juventude e de Hermano, um viúvo de hábitos estranhos, cuja a história de vida e traços de sua personalidade esquisita vão sendo revelados no decorrer do enredo. 

   Logo no início somos apresentados à figura de Hermano que se casou pela primeira vez com Julieta e durante um bom tempo formaram um belo casal apaixonado, porém Julieta morre em decorrências de um aborto espontâneo. Ele sofre com a ausência da esposa e cria uma espécie de fascinação pela sua memória, se mantendo viúvo e fiel à falecida por muitos anos. Até que um belo dia, através do médico e amigo de infância Henrique, ele conhece Amália sua vizinha que era apenas uma menina quando se casou pela primeira vez, mas que agora já é uma moça e se interessou pela figura excêntrica de Hermano. 

    A princípio Amália se sentiu atraída tanto pela figura de Julieta, quanto pelo fascínio que Hermano cultivava. Os dois acabam se apaixonando, porém Hermano fica confuso com esse amor, pois  ainda se sente ligado a primeira esposa. Amália também tem certo receio de início, mas mesmo assim se casam. Amália muda-se para casa de Hermano e aqui começa um série de eventos que vão fazer dessa relação, uma história no mínimo curiosa. No começo Amália tem dificuldades de se estabelecer como dona da casa e não é reconhecida como tal nem pelos empregados, sobretudo por Abreu, um criado antigo que tinha a falecida esposa como filha e não aceita presença de Amália. 

    Além disso, ela enfrenta também problemas matrimoniais com Hermano, pois passados os primeiros dias de lua de mel, Amália se sente rejeitada pelo marido que até então nunca lhe oferecera uma carícia sequer, nem um beijo na boca. No máximo ele lhe beijava a testa. Prestes a desistir deste casamento e propor uma separação, Amália descobre o grande segredo de Hermano e que de certa forma explica muito de sua personalidade esquisita e doentia. É aqui que a narrativa ganha certo fôlego e ao tentar salvar o casamento e tentar ser amada por Hermano, Amália entra num jogo de sedução perigoso e quase tão doentio quanto a mente enlouquecida do marido. Uma série de eventos acontecem num ritmo bem acelerado, e leva a história para um desfecho intrigante e duvidoso. 


UMA HISTÓRIA ESTRANHA

    Um enredo simples, mas que aos poucos apresenta um conflito psicológico tenso. Um homem obcecado por um ideal de mulher e a medida que vai conhecendo mulheres reais, tenta encaixá-las nesse ideal. Num primeiro momento, me passou a impressão de que José de Alencar estava apenas tentando elaborar uma defesa prévia, para justificar o direito do homem de se casar novamente. Mas não é bem assim, afinal viúvos se casarem novamente era mais comum e aceitável nessa época, do que divórcios ou do que as segundas núpcias femininas que costumavam ser considerados grandes escândalos.

    A linguagem é elegante e simples. A narrativa é bem construída e as personagens femininas apresentam mudanças de comportamento interessantes, enquanto que os personagens masculinos se mantem previsíveis, principalmente se você observá-los bem no início. 


A IDEALIZAÇÃO DO AMOR

    Um detalhe curioso que nos dá pistas importantes para a história é que Hermano não estava buscando casamento quando conhece Julieta (primeira esposa) , ele se apaixona primeiramente pela voz dela que o faz imaginar a donzela protagonista da referida canção que ele adorava, uma ária de Lúcia de Lammermoor (ópera de Gaetano Donizetti que conta a história de uma donzela que enlouquece e morre por seu amor), e pode ser uma pista para compreender o desfecho da história. 

   Quando Hermano conhece Julieta se apaixona pela sua inconfundível presença.  Ela via o casamento como uma fatalidade e que deviam pertencer uma ao outro de corpo e alma. Ele acreditava que o casamento não devia ser apenas uma união social, mas a união de duas lamas gêmeas inseparáveis. Uma forte representação do amor idealizado, eterno, imaculado. Aqui, podemos observar a idealização do amor para além da questão física, a ideia de almas gêmeas, ligações eternas, etc. e nem a morte os separa aqui, o casamento é colocado de uma maneira romantizada para além do contrato social. Casaram-se por amor e não pelas costumeiras convenções da época. Mesmo depois de morta Julieta, a imagem dela torna-se um espectro vivo e presente na vida de Hermano. 

    Já a jovem Amália, se apresenta como uma garota que desfruta de sua juventude e liberdade de mulher solteira, e não tem a mínima vontade de se casar, mas se sente atraída pela fidelidade e devoção que Hermano tem pela falecida Julieta, ou seja por aquilo que considera  amor ideal.


A IDEALIZAÇÃO DA MULHER

    Essa é uma marca interessante de se observar no romance, a idealização das mulher. Hermano é um homem que tem um ideal de mulher na mente e dentro desse ideal ele não valoriza "forma" e sim "conteúdo". Ele se apaixona pela primeira esposa ao ouvir a sua voz, e casa-se com ela mesmo ela não sendo bela e nem rica, convenções comuns da época. Mas ele se encanta pela sua presença.

    Hermano, só se interesse por Amália somente quando ele a ouve a cantar, pois sua voz o faz lembrar de Julieta por quem se apaixonou também ao ouvir a voz. Ele despreza seus atributos físicos e intelectuais. 

    Quando seu segredo é revelado e toda a sua demência vem à tona, temos então a verdadeira face do fantasma que assombra Hermano. Desde o princípio ele nunca amou nem Julieta e nem Amália e sim um ideal de mulher baseado numa certa pureza, numa essência de padrões inventados por ele e no qual ele tentou encaixar as mulheres reais que ele conheceu. Falhou ao tentar lidar com essa ilusão, e tenta fugir disso. 


POSSÍVEIS LEITURAS

    Não achei uma grande história e talvez não seja o melhor de José de Alencar. O personagem principal me dava nos nervos enquanto lia. Que cara chato! Porém, trata-se de um livro no mínimo curioso, por apresentar em sua narrativa, vários elementos que foram retomados em outros romances posteriores, por exemplo: segundas núpcias do homem de posses, o fantasma da falecida que assombra  a nova esposa e a impede de ser a dona da casa, a personalidade obscura do marido que só se explica no final mediante a descoberta de um segredo, o "exorcismo" do fantasma da primeira esposa através de um jogo psicológico de inversão de perspectivas, um incêndio fatal e a maternidade como consolidação da nova união e promessas de viverão felizes para sempre. 

    Esses elementos te fizeram lembrar de alguma outra história? Certamente, pois eles estão presente em A Sucessora de Carolina Nabuco (resenha aqui), em Rebecca de Daphine du Maurier (resenha aqui), e também em vários outros romances do século XIX e começo de século XX. Histórias diversas, muitas escritas por mulheres , porém com diferentes desenvolvimentos. 

    Sobre esses semelhanças e principalmente sobre as diferenças fiz uma análise que você pode LER AQUI. 

    De toda forma, acho interessante a leitura deste livro tanto para conhecer melhor a obra de José de Alencar, mas  principalmente se você tem interesse nesses temas recorrentes em romances dessa época e no curioso caso da semelhança entre os romances citados acima.


SOBRE O AUTOR

José de Alencar, (Messejana, atual Fortaleza- CE, 1 de maio de 1829 — Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1877)  foi um escritor e político brasileiro. Notável como escritor por ter sido o fundador do romance de temática nacional, e por ser o patrono da cadeira fundada por Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras.

Na carreira política, foi notória a sua tenaz defesa da escravidão no Brasil quando ministro da Justiça do segundo reinado (ver Gabinete Itaboraí de 1868). Era neto de Bárbara de Alencar, uma heroína da Revolução Pernambucana.

Em 1856, publicou o seu primeiro romance conhecido: Cinco minutos. Em 1857, revelou-se um escritor mais maduro com a publicação, em folhetins, de O Guarani, que lhe granjeou grande popularidade. Daí para frente escreveu romances indianistas, urbanos, regionais, históricos, romances-poemas de natureza lendária, obras teatrais, poesias, crônicas, ensaios e polêmicas literárias, escritos políticos e estudos filológicos. A parte de ficção histórica, testemunho da sua busca de tema nacional para o romance, concretizou-se em duas direções: os romances de temas propriamente históricos e os de lendas indígenas. Por estes últimos, José de Alencar incorporou-se no movimento do Indianismo na literatura brasileira do século XIX, em que a fórmula nacionalista consistia na apropriação da tradição indígena na ficção, a exemplo do que fez Gonçalves Dias na poesia.

É considerado um dos grandes nomes da literatura brasileira.

Karina Guedes
@okarapoetica