domingo, 24 de abril de 2022

NA IDADE MÉDIA, UMA MULHER OUSOU ESCREVER e o mundo nunca mais foi o mesmo.


O legado dessa mulher é apresentado em "Christine de Pizan – Uma Resistência", livro escrito por Lucimara Leite, professora e pesquisadora de literatura medieval na França e Portugal. Mestre em Comunicação e Semiótica, ela pesquisa sobre Christine de Pizan desde a graduação. Neste livro faz uma análise de “Cidade das Damas” e “O espelho de Christine”, revelando importantes aspectos dessas obras escritas na idade média por Christine de Pizan.

O recorte que Lucimara Leite faz neste trabalho, entre os séculos XIV e XV, chamado de baixa idade média, apresenta alguns aspectos dessa época relevantes para compreensão da obra de Christine de Pizan. Neste período, houve uma pequena abertura nas estruturas sociais da época e isso foi bom para as mulheres como um todo. As Cruzadas, A Guerra dos Cem anos, a Peste Negra, fizeram com que muitos homens ficassem fora por longos períodos e isso fazia com que as mulheres tivessem que assumir a administração das casas e das propriedades, assumindo papéis de lideranças em suas províncias. O que vai chamar atenção para a “necessidade” da educação delas.

O livro está estruturado em três capítulos:

No capítulo I, a autora faz uma breve introdução do momento histórico e dos tipos de textos que circulavam na época (idade média, séculos XIV e XV). Explica as diferenças e semelhanças entre os tratados de educação vigentes : specula exempla. E esclarece como era a imagens da mulheres retratada por outros autores.

Specula (espelhos) – Tratados dos príncipes. Visavam a educação dos garotos, principalmente delfins e aspirantes ao trono ou senhorio. Trazia educação moral mas principalmente administrativa e política, basicamente eram manuais de como governar. Tinham forte cunho político e são considerados como os primeiros documentos de educação pedagógica. A figura do herói estava sempre presente aqui.

Exempla – Manuais de educação com foco na conduta moral. Tinham forte cunho doutrinador. Traziam histórias cujos personagens e suas posturas deveriam ser imitados. Todos baseados na moral cristã. Traziam histórias curtas de mártires e santos, muitas vezes apresentadas como contos, fábulas, anedota, narração verdadeira ou lendária, etc. Destinados as pessoas mais simples (menos letradas) e o intuito era passar um modelo de comportamento. 

No capítulo II ,  é apresentado a estrutura e descrição das duas principais obras de Christine de Pizan, A Cidade das Mulheres (Livre de la cité des dames) e O livro das três virtudes (Le Livre des Trois Vertus). Assim como a recepção que Christine teve em sua época e o impacto de seus textos.

No capítulo III, traz a argumentação da autora que considera o trabalho de Pizan um exemplo de resistência feminista na idade média. Faz um breve resumo da educação dos séculos XII e XV e compara os textos de Christine com o de outros autores homens. Apresentando os pontos em comuns entre os dois principais textos de Christine.

Com uma linguagem bem didática, o livro é uma excelente introdução à obra e ao pensamento de Christine de Pizan. Nos permitindo ter uma ideia geral do que ela defendia e acreditava ser o ideal de educação para as mulheres neste período medieval.


Mas quem foi Christine de Pizan?

Christine de Pizan, nasceu em Veneza, Itália em 1364. Mudou-se com sua família para Paris, França, aos 4 anos de idade, quando seu pai foi convidado a trabalhar na corte do rei Carlos V. Sob a orientação de seu pai, teve acesso à educação e graças a posição exercida por ele na corte ela teve acesso à biblioteca do rei, considerada uma das melhores na época. O que contribuiu muito para sua formação intelectual. Casou-se aos 15 anos com um marido escolhido pelo seu pai.

Nos anos seguintes, com a morte do rei a França passa por momentos difíceis e a família de Christine também, em 1386 seu pai morre e três anos depois falece seu marido com quem viveu por dez anos e segundo ela, um casamento feliz. Neste momento sua posição social muda e Christine se torna a provedora da família. Decide não se casar e sustentar sua família com o próprio trabalho como escritora. Começa seu ofício literário escrevendo poesias e com a boa recepção de seus textos dedica-se inteiramente à produção literária que passa a ser sua fonte de renda.

Ela era conhecida por criticar a misoginia presente no meio literário da época, predominantemente masculino e defender o papel vital das mulheres na sociedade. Foi a primeira mulher na França a viver do seu trabalho como escritora.

  

O que Christine de Pizan defendia?

Importante lembrar que a Idade Média foi um período em que o pensamento teocrático e aristotélico influenciou toda a organização social da época, desde os regimes de poder vigentes até a conduta moral da sociedade. Neste período, a igreja católica detém certo poder e influência sobre o clero e senhores feudais. As mulheres são vistas apenas como procriadoras e seu lugar é sempre abaixo dos homens, maridos, pais, irmãos e filhos homens. O acesso à educação era dado apenas às mulheres de classes mais abastadas e ainda assim, voltado para ensinamentos de boa conduta moral e social, cuidado com filhos e casamento. Não se incentivava o desenvolvimento intelectual delas.

É neste contexto que Christine de Pizan escreve suas obras que chamam a atenção por trazer para o campo da escrita e das discussões intelectuais, as questões das mulheres.

 

Ela defendia a igualdade entre homens e mulheres no que diz respeito a educação, afirmava que as meninas também tinham direito de receber educação intelectual assim como os meninos e não apenas educação moral como era comum na época.

 

Fez críticas aos manuais de educação para o casamento, que por serem escritos por homens não traziam as verdades da dura e injusta vida conjugal para as mulheres.

 

Defendeu que as diferenças entre homem e mulher eram de ordem social e não biológica.


Christine lutou contra a misoginia e a favor da valorização da mulher. Tendo como objetivo estabelecer uma "moral feminina". Assim, ela participa da "Primeira Querela Feminista" e como escritora assume publicamente seu posicionamento escrevendo contra o "Roman de la Rose", de Jean de Meung, "um dos livros mais populares na Europa no século XIII, de cunho misógino, representando as mulheres como nada mais que sedutoras, numa mordaz sátira às convenções do amor cortês." (1)

 

Suas obras de maior repercussão foram "A Cidade das Mulheres" e " O Livro das três virtudes".

 

No livro A Cidade das Mulheres, Christine usa de alegorias para trazer uma reflexão sobre a representação da mulher na sociedade e combater a misoginia dos textos da época. Ela constrói uma cidade para as mulheres e cada parte da cidade é representada pelas grandes mulheres da história, da mitologia e da vida real, até aquele momento. Poderíamos dizer que esta é a primeira tentativa de escrever uma “História das mulheres”.

 

Sabemos que desde os primórdios da escrita, quem escrevia e detinha o poder da palavra eram os homens. E toda a história conhecida até então, era história escrita por eles. Homens que usaram tal poder para denegrir a imagem da mulher e assim contribuir para a disseminação da misoginia.  Nos textos masculinos as mulheres aparecem sempre como sedutoras, frágeis, incapazes e prontas para sempre ludibriar os sentimentos masculinos. Nas histórias dos homens dessa época eles são sempre as vítimas e as mulheres as "demônias".  

 

Christine de Pizan escreve na contramão deste padrão. Ela tenta mudar a mentalidade da época e sua voz encontra eco naquele exato momento histórico onde começava, ainda que minimamente, uma abertura para as mulheres se colocaram nas sociedades como sujeitos de suas vidas. Existia ali uma faísca de grito de liberdade e ela acendeu a chama.

 

Através das figuras principais de sua cidade fictícia, ela vai construindo um novo olhar a medida que derruba os principais preconceitos contra as mulheres. 

 

Ressalta a importância da fala feminina e a escuta desta fala. Numa época em que as mulheres são acusadas de falar demais (de modo leviano), aqui a escritora dá ênfase a sabedoria feminina que se expressa pela fala.

 

No último capítulo, se dirige a todas as mulheres das camadas sociais. É interessante notar que ela não divide as mulheres apenas em casadas, solteiras ou viúvas e sim entre mulheres pobres e ricas.  A hierarquia que ela apresenta está baseada na condição social e não no estado civil.

 

 

Já em O Livro das Três Virtudes, encontramos basicamente um manual de educação moral religiosa e boas maneiras dirigido para as mulheres. A diferença deste tratado de educação de Christine para o de outros autores da época que se desdobraram em cima do mesmo tema, é que aqui ela dá instruções das mais básicas as mais específicas, no que diz respeito a organização e manutenção da vida doméstica, considerando a hipótese de que as mulheres pudessem viver sem maridos (tanto os que foram à guerra ou os que morreram) , sendo donas de sua casa e propriedade, com autonomia para decisões e gerenciamento do lar. Enquanto os autores homens sempre vão orientar a buscar um homem (pai, irmão, tutor, marido) para substituir o que está ausente, deixando a mulher sempre na condição de tutelada e nunca de autônoma.

 

Valendo-se de recursos linguísticos da época para estruturar o seu texto e sua argumentação, ela usa sua própria experiência como exemplo, partindo da realidade para construir um modelo. Vai se destacar também na maneira de passar esses ensinamentos, considerando a inteligência e astúcia de seu público, não sendo prolixa e redundante como os escritores homens que escreviam para o público feminino como se estivessem escrevendo para um público débil. 

 

Um ponto a ser observado aqui é que apesar de visionária, Christine era religiosa e defendia a hierarquia social, assim como a submissão da mulher ao casamento. Boa parte de seus ensinamentos no Espelho de Cristina, vão conduzir um esforço para manter a harmonia da vida conjugal. 

 

Apesar de parecer contraditório esse discurso se comparado ao primeiro livro, é preciso considerar todo o contexto histórico para entender esse posicionamento de Christine. Afinal, a escritora viveu numa época em que a violência contra as mulheres era aceita e regulamentada. Os maridos detinham não apenas a tutela, mas o poder sobre a vida de suas esposas, sendo livres para puni-las com a morte em casos de desobediência ou desonra. Elas eram sua propriedade. Então, quando Christine argumenta para que as mulheres mantenham a harmonia em seus casamentos, estaria de certa forma ensinando-as a se protegerem das possíveis violências dentro daquelas circunstâncias.

 

Esses ensinamentos que para nós mulheres letradas do século XXI, podem parecer insuficientes ou contraditórios. Mas também nos mostram o quão difícil, sofrida e limitada era a vida das mulheres naquele período. Ser propriedade de um homem, antes de ser sujeito de sua própria vida é por demais assustador e revoltante.

 

No entanto, se refletirmos obre os nossos dias constataremos muitas correntes que ainda prendem as mulheres privando-as de alguma liberdade. A dependência financeira, falta de equidade no mercado de trabalho, os assustadores números de registros da violência doméstica e os aumentos de casos registrados de feminicídio, são alguns exemplos. Parece que em certos aspectos, sobretudo no que diz respeito à violência contra as mulheres, as coisas não mudaram tanto assim desde a idade média.

 

O Legado de Christine de Pizan - Influências posteriores

 

Suas ideias foram retomadas na virada dos séculos XIX ao XX, quando os movimentos sufragistas resgatam suas ideias. (Talvez isso explique, em partes, a visão burguesa e conciliadora do movimento sufragista).

 

Christine foi uma intelectual, visionária, ativista, porém conciliadora. Ela queria que as mulheres fossem valorizadas e não libertadas. Ocupar lugar de igualdade entre os homens não significa necessariamente revolucionar, afinal, ela escrevia para todas, mas sua literatura era consumida pelas classes mais abastadas e letradas.  As mulheres de classes mais abastadas, tendem a defender a valorização das mulheres somente no que tange sua classe. Nunca estiveram preocupadas de verdade com a vida de suas vassalas. Logo, fazem o possível para manter as hierarquias estabelecidas. Em resumo, mulheres ricas vão sempre defender mulheres ricas.


Apesar deste último ponto que considero interessante observarmos com criticidade e refletir sobre isso, devemos reconhecer a ousadia e astúcia de Christine de Pizan na Idade Média. Afinal, considerando todo o contexto em que ela vivia e sendo uma mulher de classe abastada e de família respeitada, não teria grandes dificuldades para conseguir um segundo marido e manter sua vida burguesa. Mas ela não o fez, preferiu encarar o desafio de sobreviver do próprio suor e ainda com a audácia de se engajar numa área dominada pelos homens, a escrita.  Seu mérito está não somente na criatividade e perspicácia de seus livros, mas na coragem de ter decidido escrevê-los e assim registrar um momento único na história, onde as mulheres começam a resgatar suas vozes tão silenciadas nos séculos anteriores, principalmente pelo discurso religioso. E o irônico disso tudo é que ela vai usar justamente a moral religiosa para cativar seu público e se fazer ouvir.

 

Por se tratar da obra de uma das percursoras do que hoje chamamos de pensamento feminista ou movimentos feministas, o trabalho de Christine de Pizan  é um registro raro na história. Ela precisa ser conhecida, lida, estudada. Sua vida e obra são de enorme importância para conhecermos o percurso histórico do movimento feminista e a trajetória da conquista de um dos mais importantes direitos adquiridos até agora, o direito de saber ler e escrever, ou seja,  o acesso à educação intelectual para as mulheres.

E todo trabalho que venha esclarecer e enfatizar essa importância, deve ser lido e estudado. Logo, o trabalho de Lucimara Leite, autora de “Christine de Pizan, Uma Resistência” é essencial para qualquer um que pretenda compreender o feminismo e as trajetórias de lutas das mulheres ao logo da história. Considero simplesmente uma leitura obrigatória!

Boas leituras e Boas reflexões!

Inté!

Karina Guedes

@okarapoetica


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