Na literatura, a
história de Gerald é contada primeiramente em forma de contos e os primeiros
contos foram agrupados em dois livros, “ O último desejo” e “ a Espada do
destino”. Gostei muito dos dois primeiros livros e o modo como os contos estão
articulados, gerando mais curiosidade sobre a narrativa. A sequência se dá em
forma de romance, começa com “ O sangue dos Elfos”, seguidos por
“Tempo de desprezo”, “ Batismo de fogo”, “ A Torre da Andorinha” e “ A
Senhora do Lago”. Há ainda um oitavo livro, “Tempo de Tempestade” que foi
escrito posteriormente e que se encaixa no início de toda a narrativa, como um
“prelúdio”.
Vamos começar pela ambientação e enredo da história da Saga do Bruxo
O lugar onde se passa a maior parte da narrativa é chamado de “ O Continente” e em algumas passagens fica implícito que há mais terras que ainda não foram exploradas e que é possível que haja algo além-mar que é desconhecido. Apenas uma pequena parte do mundo do bruxo é conhecida, incluindo os numerosos reinos no Norte e o Império Nilfgaardiano no Sul. Toda a história se passa neste Continente onde existem os reinos governados por seres humanos (reis, rainhas, duques etc) e os territórios governados por elfos e outros inumanos. O mundo apresentado nas obras sobre o bruxo inclui o planeta sem nome para o qual as pessoas vieram de outro mundo, bem como outros mundos paralelos, por exemplo, o mundo de Aen Elle, para o qual Ciri se move, graças às suas habilidades.
Já nos primeiros contos são revelados os conflitos entre elfos e seres humanos, o que faz com que as diversas raças (magos, feiticeiros, anões, metadílios, lobisomens, vampiros, ananicos, duendes, dríades, unicórnios, etc) se envolvam direta ou indiretamente nesses conflitos, hora aliados aos humanos, hora aliados aos elfos, ou simplesmente tentando não se envolver, dependendo do jogo de interesses de cada grupo. E temos em meio a esse conflito o reino de Nilfgaard, liderado pelo imperador Emyr var Ermeis que começa invadir territórios e tentar conquistar reinos ao norte do continente provocando assim uma grande guerra que se desenrola no decorrer da história. E onde há guerra, há conchavo político, corrupção, violência, mortes, etc. É nesse contexto que a história de Gerald se desenvolve.
Os bruxos, categoria do qual Gerald faz parte, normalmente não se envolvem nos conflitos políticos do Continente, é uma questão de ética deles. Isso fica evidenciado na trajetória de Gerald, porém essa neutralidade será colocada em cheque em diversos momentos e Gerald será obrigado a escolher um lado para lutar, nem que seja para se defender, e será levado a lutar na guerra entre Nilfgaard, reinos e elfos. Ou seja, é impossível ficar de fora dos conflitos ou não ser atingido pela guerra.
E assim começa a
saga do Bruxo, onde será envolvido por várias tramas e será levado a lutar e
defender quem ama e isso é algo revelador no decorrer da narrativa, pois no
início somos convencidos por ele mesmo de que os Bruxos não amam ninguém, que
são apenas mutantes insensíveis e indiferentes à vida alheia e estão apenas
preocupados em ganhar seu dinheiro matando monstros e nada mais lhes interessa.
Porém, as atitudes de Gerald aos poucos contradizem essa visão e a cada
aventura que compõe esta história, torna-se inevitável nos simpatizarmos com
ele e torcer pela causa que inevitavelmente ele abraça. E sua jornada se
tornará longa e cheia de desafios, pequenas vitórias, grandes derrotas,
inevitáveis perdas, como toda aventura heroica precisa ser.
Esses três
personagens, solitários em suas trajetórias individuais vão encontrar uns nos
outros a força e a motivação para seguir em frente e enfrentar os mais
violentos e aterrorizantes desafios em suas jornadas. Os laços afetivos que os
unem, tornam suas motivações mais profundas para continuar lutando até o fim.
De modo geral os personagens são carismáticos, alguns mais outros menos. Os vilões são convincentes e realmente nos aterrorizam. O autor não economiza nas doses de violência e crueldade dos vilões.
Os três personagens principais. Gerald, Yennefer e Ciri têm um bom nível de evolução, principalmente Ciri que sai da condição de donzela a ser salva pelo seu protetor, para ser salvadora de si mesma e inclusive daqueles que tentam protegê-la.
Sua obsessão por ser mãe a leva a cometer alguns erros e ela paga por cada um deles. Mas é na relação com Ciri que ela vai descobrir o sentido da maternidade e vai involuntariamente se permitir ser mãe adotiva.
Gerald, que a princípio se mostra frio, rude e agressivo. Aos poucos se revela mais cavalheiro do que muitos cavalheiros dos reinos que estão em luta. E talvez seja essa inversão que tanto nos cativa, ele é ranzinza, cheio de traumas e esconde seus medos, mas por trás do lobo solitário e indiferente a tudo e a todos, tem um homem que ama e quer ser amado. Isso cativa e nos leva a perdoa-lo em suas escolhas equivocadas e seguimos com ele em seus caminhos errantes.
Minha leitura
A linguagem é fluida e dinâmica. Não temos um único narrador, pois muitos eventos e tramas da história são narrados pelos próprios personagens. Algumas vezes num futuro distante relembrando fatos do passado, dando a impressão de que toda a história que estamos lendo já foi escrita e todos já a conhecem. Algumas expressões e palavrões muitas vezes são palavras modernas (ao menos na tradução para Língua Portuguesa, que foi a que li), o que traz a história para o nosso tempo, apesar de que teoricamente teria acontecido há muito tempo atrás, nos primórdios da história do mundo (ou dos mundos). E sim, tem muito palavrão no texto, alguns personagens são bem desbocados e suas falas são agressivas e violentas, e de certa forma isso dá ao trabalho de Sapkowski uma identidade própria.
Talvez esse tom
obscuro da narrativa seja a influência
das mitologias em que o autor se inspira, mitologia eslava, mitologia celta,
mitologia nórdica, na quais podemos encontrar dentre as diversas histórias que compõem essas mitologias, muitos mitos
e lendas cheias de violência e terror, sobretudo na mitologia eslava. As histórias do leste europeu em geral são bem diferentes e têm estruturas e características que de longe nos causam certo estranhamento. O autor lança esse tom mais sombrio dessa
mitologia em seu texto a partir do romance que compõe a saga do Bruxo e
tenta fazer essa ponte entre o ficcional fruto do imaginário popular (que pode
ter fundo de verdade) com situações reais, sobretudo de momentos de guerra.
Em diversos momentos menciona elementos dessas mitologias e principalmente da
cultura celta, sobretudo o calendário e as datas festivas.
Difícil não lembrar de Senhor do Anéis e outras histórias de fantasia. Apesar do autor beber da mesma fonte de Tolkien e outros escritores de fantasia europeus, o mundo criado por ele é muito diferente dos demais. Digamos que ele não coloca em sua narrativa aquele romantismo de Tolkien ou aquele tom mais juvenil de JK Rowling por exemplo.
No mundo criado por Sapkowski há muita violência, não só na guerra, mas em muitos momentos no desenrolar da vida dos personagens. Durante a narrativa os personagens se deparam com situações como o deflorar da puberdade, a descoberta do sexo, estrupo, incesto, aborto, sexo consentido (com descrição cenas bem eróticas), sexo como instrumento de manipulações e poder, prostituição, torturas e misoginia. Alguns vilões são sanguinários e a descrição minuciosa das cenas violência e tortura são de embrulhar o estômago. A saga do Bruxo que se inicia a partir do terceiro livro vai tomando um tom cada vez mais obscuro e violento, distanciando um pouco nas nuances dos dois primeiros livros de contos. E a partir do quinto livro a história fica bem pesada.
É um livro de ficção/ fantasia sem dúvida. Porém, na narrativa construída por Andrzej Sapkowski essa atmosfera ganha doses extras de verossimilhança com a própria história de povoamento e assentamento dos povos indo-europeus. Em muitos momentos a fantasia dá lugar a realidade e parece que estamos apenas lendo relatos de muitas das guerras conhecidas na história humana.
A utilização da metalinguagem para dar a narrativa tons de
verossimilhança, foi uma escolha muito criativa. O autor tenta de uma forma criativa entrelaçar o mundo real com o mundo inventado, e
faz isso partir das próprias lendas locais que são em alguns momentos
recontadas em sua história ou então criticadas pelos próprios personagens num
tom de ironia e sarcasmo.
No entanto, nos livros finais percebemos que essa tentativa de colocar lendas folclóricas inventadas por ele, entrelaçadas com as lendas folclóricas que conhecemos das mitologias dos povos antigos da Europa numa narrativa linear e “única”, vai ficando cada vez evidenciada a partir do sexto livro e também no último livro quando aparece a personagem Nimue e Galahad, o cavaleiro de Camelot. Ambos personagens do Círculo Arturiano.
Tenho apreço pelas mitologias eslava, nórdica e celta e conheço algumas das lendas mencionadas na história do Bruxo, e isso facilitou a compreensão de modo geral. Gostei da parte da releitura de lendas muito conhecidas, como “A Branca de Neve, “A Bela e a Fera”, “A Pequena Sereia”, levando em conta as versões mais antigas dessas histórias que são carregadas de violência e terror. Gostei também da releitura que Sapkowski faz delas e o modo como as insere na narrativa, principalmente nos dois primeiros livros. Funcionou na estrutura dos contos. Mas no arco do romance em si, que acontece a partir do terceiro livro, achei que algumas coisas não se encaixaram muito bem, nessa tentativa de conectar todas essas diversas lendas com as lendas inventadas pelo autor.É como se a história do mundo real que conhecemos fosse contada partir do ponto de vista dos seres fantásticos e nossas próprias teorias fossem “corrigidas” a partir do ponto de vista deles. E quem vai dominar esse discurso de autoridade acerca da criação do mundo são os elfos e em sua versão da história do mundo, os humanos são apenas um capitulo desastroso, fica implícita aqui uma boa crítica a presença do homo sapiens no planeta.
Apesar de considerar essa estratégia narrativa muito
criativa, achei que ficou um pouco confusa. Essa mistura de muitos mitos
diferentes e tão carregados de simbolismos passíveis de vários tipos de
interpretações e que por vezes soam contraditórios e incompreensíveis entre si.
Nada que implique no deleite na narrativa principal, a
trajetória de Gerald, Ciri e Yennefer, mas causa uma certa distração e confusão
na apreciação da narrativa como um todo. Tive certa dificuldade de delimitar a
unidade temática da história, pois parece ser sobre tudo e nada ao mesmo tempo.
Seria sobre amor e guerra, sobre solidão e encontros, sobre dominação e
resistência, ou seria sobre tudo isso misturado? Não consigo definir.
Para não perder o pique da leitura, decidi me concentrar mais no núcleo Gerald, Yennefer e Ciri, do que na guerra humanos x elfos x Nilfgaard, justamente porque a justificativa desta guerra está totalmente calcada nesses simbolismos misturados e a meu ver um pouco confuso.
As personagens femininas em The Witcher Um ponto muito positivo na narrativa é a presença de muitas personagens femininas que quebram os estereótipos muitas vezes usados para descrever as mulheres em narrativas de aventura e que ficou de certa forma consolidado pelas versões mais modernas desses contos de fadas mais famosos.
Na história de Sapkowski, encontramos muitas mulheres guerreiras, livres, donas si, que empunham espadas, lutam e se aventuram tanto quanto os personagens masculinos e isso é muito gostoso de ler. Aqui as mulheres têm protagonismo na história, seja como vilãs ou heroínas, elas aparecem, tem importância nos núcleos principais da narrativa e são muitas vezes a chave para o desenrolar da história. A própria trajetória de Ciri e Yennefer evidencia isso.
Sobre o final
Sinceramente, não gostei do desfecho da luta entre o imperador e Gerald. Acho que ficou muito sem sentido. E o ponto que me incomodou foi a inesperável desistência do imperador Emyr no confronto final com Gerald. Vejam bem, durante sete livros somos aterrorizados pela monstruosidade, perversidade do impiedoso Emyr var Emreis e seu plano macabro de ascensão e poder. Depois ficamos horrorizados com seus projetos incestuosos para com sua filha, sendo que ele mesmo dispôs dos piores bandidos para persegui-la, fazendo com que passasse por todo tipo de violência. E de repente, como num passe de mágica, diante do choro de Ciri ele simplesmente desiste de tudo. Liberta a garota, consequentemente Gerald e Yennefer a quem ele tinha acabado de sentenciar a morte para que não interferissem em seus planos macabros. Simples assim, ele desiste. Tudo isso em menos de cinco páginas. Sinceramente, eu esperava mais.
Já o final-final é ambíguo, não dá para ter certeza de que sobreviveram. Podemos ler que sim, com a ajuda do unicórnio Ciri conseguiu salvar Gerald e levar ele e Yennefer para um lugar seguro e foi tudo lindo e viveram felizes para sempre.
Mas dois detalhes no texto dão pistas para outra interpretação, eles estavam leves (como fantasmas) , a presença de companheiros que já haviam morrido ( mesmo que por alucinação, afinal em muitas culturas mortos veem mortos). Dá para interpretar que eles morreram e foram para algum tipo de paraíso (uma ilha, tal qual Avalon, novamente a ligação com lendas do círculo Arturiano).
E por isso Ciri, senhora do tempo e do espaço, que viajou até Camelot, chora ao contar esse episódio final para Galahad, filho de Lancelot, estando os dois à beira do lago mágico (menção direta a famosa lenda do círculo Arturiano, a Dama do Lago). Vejo aqui mais uma evidencia da tentativa do autor de “encaixar as lendas” numa narrativa mais ou menos linear.
Final criativo mas não gostei, como disse eu esperava mais.
Não seguirei Geral nos games, mas quando a Netflix lançar a próxima temporada com certeza estarei lá acompanhando e torcendo pelo Bruxo e sua trupe. Quem sabe os
produtores da série não dão uma repaginada básica e melhoram um pouco esses
aspectos negativos da história? Fico na torcida para que sim.
Andrzej Sapkowski, nascido em 21 de junho de 1948) é um escritor de fantasia polonês. Ele é mais conhecido por sua série de livros The Witcher , que foi traduzido para 37 idiomas, tornando-o o segundo escritor polonês de ficção científica e fantasia mais traduzido depois de Stanisław Lem . Seus livros venderam mais de 15 milhões de cópias. Ele recebeu o Prêmio David Gemmell e o Prêmio World Fantasy Life Achievement .
Dicas:
1) 1) Fazer a leitura acompanhando o mapa do continente é de grande ajuda para compreender os deslocamentos dos personagens e também os avanços e retrocessos da guerra entre Nilfgaard e os reinos do Norte. É possível baixar alguns modelos desenhados por fãs na internet.
2) Para quem quiser se aprofundar na história e até mesmo jogar os games, sugiro pesquisar o artigo da Wikipédia em polonês. Tem muita informação detalhada sobre todo o universo de The Witcher.
3) Para quem ficou com água na boca de saber o que aconteceu com Gerald e Yennefer depois de toda essa saga, segue aqui um link com o conto “Algo termina e Algo Começa”, que faz parte de uma coletânea que o autor escreveu posteriormente e em que é narrado o casamento de Yennefer e Gerald.
Embora "Algo termina, Algo começa"
diz respeito a Geralt de Rivia , não está relacionado à saga Witcher e, ao
contrário da nota da editora, não é um final alternativo para a saga, mas um
trabalho completamente separado - como enfatiza ele mesmo, o autor.
Boas leituras! Inté!
Karina Guedes
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