Debates intensos, música, literatura e muita poesia. Foi
intenso! Uma festa literária com as mais diversas formas de manifestações da
palavra. Ancestralidade, oralidade e lugar de escuta foram chamados constantes
durante as diversas mesas. Resgatar as origens da literatura, se colocar no
lugar do outro, ouvir silêncios. Eis o convite posto para as muitas leituras de
incontáveis narrativas. Resistência é palavra de ordem para o atual momento em que vivemos. E nesses dias de festa literária, vi a literatura resistir, insistir e acontecer. É impossível sair de um encontro desses sendo a mesma pessoa de antes. Difícil traspor em poucas palavras todas as emoções vividas, mas tentarei contar um pouco do que senti nesses dois dias que participei.
Um dos momentos mais marcantes para mim foi a mesa literária "Lugares e Falas" com a presenta da escritora a Eliane Potiguara e por mais dois escritores incríveis, que até então eu não conhecia. Amara Moira e Marcus Groza que com suas falas provocadoras e cativantes fizeram do encontro um momento intenso de falas e escutas.
Particularmente me emocionei
muito a presença da Eliane Potiguara e vou contar por quê: ela foi uma grandiosa inspiração quando comecei a descobrir lá
nos idos de 2010 a recente, e até então meio desconhecida nos meios acadêmicos, literatura
indígena em língua portuguesa. Naquela época participei de um Sarau das Poéticas Indígenas na Casa das
Rosas em São Paulo e ali conheci pessoalmente Daniel Munduruku e Carlos Tiago e
através deles descobri a literatura indígena e outros escritores como Eliane
Potiguara. Foi então que decidi conhecer mais de perto essa literatura
“emergente” e fazer o trabalho de conclusão de curso de letras sobre esse tema.
A princípio queria fazer a análise do livro da Eliane, mas estava muito
difícil consegui um orientador na faculdade. Sempre que eu abordava um
professor e expunha meu tema, recebia uma recusa. Alguns simplesmente me
desestimulavam abertamente, dizendo que eu deveria dissertar sobre autores mais
conhecidos, tipo Clarice Lispector e Machado de Assis. E eu dizia, “tenho todo
respeito a esses escritores maravilhosos e consagrados, mas quero falar de
gente viva e da literatura que está sendo criada neste momento”. Por mais que no fundo eu não soubesse exatamente
que ponto da literatura ou textualidades indígenas iria abordar, tinha
certeza de que esse era o assunto que precisava ser discutido num curso de
letras. E queria muito trazer essa expressão literária para minha realidade de estudante e futura
professora. Mas foi bem difícil, os professores simplesmente não me davam
ouvidos. Até que um belo dia, conversando com a querida professora de literatura
infantojuvenil e explicando minhas descobertas, ela perguntou se não
tinha nenhum autor “desses indígenas” que tinha escrito livro para criança. Na
hora me lembrei do primeiro livro do Daniel Munduruku que li e disse que sim. Então, a professora disse que talvez pudesse ser minha orientadora, apesar de não saber nada
sobre esse tema. Aceitei esse talvez como um sim e comecei o meu trabalho.
Não pode ser com o livro da Eliane como eu havia pensado inicialmente, mas pode
ser com o do Daniel e foi maravilhoso também. Porque acabei abrindo a mente
para a ideia de que a literatura indígena pode e deve compor a gênese literária
na formação de pequenos leitores, dissertei sobre isso no TCC (que pode ser lido aqui). E foi muito bom trilhar
esse caminho.
Portanto, a presença da Eliane ali na frente, e mais que isso suas palavras carregadas de ancestralidade, sabedoria e resistência, me lembram do quanto valeu a pena insistir em continuar buscando e conhecendo autores indígenas e ter feito o TCC sobre esse tema. Foi marcante e fundamental para minha formação e primeiros passos como professora. A literatura étnica precisa e deve estar presente não só nos currículos, mas em nossas práticas e vivências diárias em sala de aula. Mais do que instrumento de letramento, é alimento para a elevação da consciência de quem nasce em um país tão diverso culturalmente e tão plural como o nosso Brasil.
Portanto, a presença da Eliane ali na frente, e mais que isso suas palavras carregadas de ancestralidade, sabedoria e resistência, me lembram do quanto valeu a pena insistir em continuar buscando e conhecendo autores indígenas e ter feito o TCC sobre esse tema. Foi marcante e fundamental para minha formação e primeiros passos como professora. A literatura étnica precisa e deve estar presente não só nos currículos, mas em nossas práticas e vivências diárias em sala de aula. Mais do que instrumento de letramento, é alimento para a elevação da consciência de quem nasce em um país tão diverso culturalmente e tão plural como o nosso Brasil.
Uma mesa carregada de sabedorias
Quando a apresentadora Adriana Couto perguntou como a palavra chegara a cada um dos autores ali presentes, Eliane contou que para ela a palavra chegou com o olhar. Voltado para as histórias de suas avós, tias e mulheres de sua comunidade. Histórias que precisavam ser escritas e contadas.
O que faz muito sentido, pois a literatura começa na
tradição oral. Ou seja, a palavra vem de dentro de nós e ter um olhar para
essas narrativas que resgatam nossa ancestralidade, é ver a “voz do oprimido
que as sai pelas unhas”, grito que emana das entranhas do ser para se fazer
conhecer e ser visível. A fala que habita nosso território mais íntimo,
apenas procura um espaço onde possa se manifestar livremente. Porque lugar ela
já tem, que é dentro de cada um de nós.
Ser protagonista da própria história, ser escritor e
personagem da narrativa que vivemos, faz com que a literatura seja também um
lugar ativo. Através de nossas narrativas, denunciamos as injustiças do mundo,
compartilhamos nossas dores e nossos devaneios, e ativamos no leitor a empatia
e a sensação de não estar só. A literatura ativista, torna-se então um lugar de
falas que se encontram, fazem coro e gritam: resistência! A palavra que habita em nós faz da vida palco e dramatizamos
cotidianamente a literatura que inventamos para nosso ser. Seja ao som do despertador que acorda o corpo
ou dos tambores que despertam a alma, vivemos a cada amanhecer um capítulo de
nossa luta. E haja vida! Pois, sempre haverá história para contar! E onde houver opressão, haverá resistência!
O fim da tarde de sábado.
A última mesa do dia, "Fé na Palavra", foi com dois escritores que eu ainda não pude ler, mas já estão na minha lista. Ainda mais agora, depois de ouvi-los e sentir o reverberar de suas palavras em ressonâncias com minhas inquietações, Maria Valeria Resende e Ronaldo Correia de Brito. A missionária e o médico, a fé e a cura tecendo caminhos para a libertação da palavra. No princípio foi o verbo e no fim, o que será?
A linguagem articulada, a fabulação, o poder de dizer o
indizível nos torna humanos e a literatura nos faz ainda mais humanos, disse Maria Valéria.
Demasiadamente comunicativos, pensantes, viventes. Filosofamos a dor e o amor,
e a palavra registra os caminhos que na aventura chamada evolução. Se antes
imprimíamos nossos devaneios em paredes lambuzadas de terra, cuspe e suor, hoje
carimbamos a polpa das árvores encadernadas em folhas de diferentes gramaturas
que carregam na leveza de linhas sem pautas, o peso de nossas falas gritadas de
nossos silêncios. E haja escuta!
Ouvir é letramento. Aprendemos o mundo através das
narrativas que escutamos com desejo e amor. Sábio é quem escuta, generoso é o
que compartilha sua fala íntima com o intuito de se encontrar com o silêncio do
outro. A leitura é viagem e encontro. Nas impressões marcadas, nas pistas
deixadas, nas verdades camufladas nas entrelinhas, encontramos muitas vezes
verdadeiros emplastos para nossas dores. É a medicina do verbo que vem curar a
alma de corpos que jazem na labuta cotidiana. Olhar, ouvir e tocar eis a
fórmula prescrita para quem precisa ir além do sobreviver. Olhar para o outro e
ver-se a si mesmo enquanto um ser de potência mais ampla. Ouvir nossas vozes
mais íntimas e aprender a escutar o próximo que nos chama. Tocar a empatia de
quem está do outro lado e reverberar a crença de que podemos juntos atingir um
ideal mais elevado. Literatura é também fermento que eleva a consciência da
massa, ela só precisa estar no pão nosso de cada dia. Amém!
Outro momento marcante foi o encerramento no domingo
Começando pela apresentação do grupo de Jongo Mistura da
Raça que foi linda! Tambores intensos evocando nossa poética para as escutas
que vieram a seguir. A homenagem ao Mestre Laudeni foi emocionante, pois nem
todos os mestres têm a chance de serem reconhecidos em vida. O canto, a dança e
o caxambu, chamados que trazem toda a nossa ancestralidade a pulsar no peito.
Dos tambores de África aos lamentos do parto e nascimento do Brasil, tudo é
grito, dor, resistência e amor. Escutamos e sentimos, escutamos e nos
encontramos em tu que também sou eu, e que se permitirmos podemos ser nós.
Desatados e livres das correntes que tentam até os dias de hoje aprisionar
nossa alma.
Depois dessa abertura, desse chamado e evocação, Mia Couto
nos presenteou com sua presença, de corpo, palavra e alma. Um dedo de prosa tão
gostoso que o tempo fluiu sem que nos déssemos conta, como toda boa prosa é
capaz de fazer. Trouxe contigo sua simpatia, carinho e amor por nossa gente.
Foi como encontrar um irmão que mora longe e chega de viagem nos contando sobre
seu mundo, seus caminhos e suas dores que em muito se parecem com as nossas.
Nos encontramos na dor e também no amor. Pois, todo sentimento de afeto é
recíproco. Em certo momento da conversa ele disse: “As nuvens escuras que
assombram o Brasil, nos preocupam em Moçambique”. Sua compaixão nos toca
profundamente e a plateia de leitores e curiosos, aplaudiram fervorosamente.
Neste momento me lembrei das palavras da produtora, “vocês vieram para ouvi-lo”,
quando dava explicações ao público sobre o cancelamento da sessão de autógrafos.
Sim, ali recolhida no lugar de escuta absorvi com cada palavra que emanava
daquele ser que vinha nos prestigiar com sua presença, intensa, sincera e muito
acolhedora. Uma presença luminosa, de estrela mesmo. De todas as falas com que
Mia nos acolheu, duas me tocaram profundamente.
A primeira foi quando contou um
pouco sobre sua infância e sobre a origem de suas palavras, que vieram de seu
silêncio. Isso bateu forte porque levei alguns anos da minha vida para
descobrir esse lugar, o lugar do silêncio. Quando cheguei neste lugar sagrado,
foi como se tivesse descoberto o maior paraíso dos mundos. Mas infelizmente não
é fácil permanecer neste lugar, a labuta cotidiana confisca meu visto de tempos
em tempos e preciso sempre o requerer novamente para voltar a este lugar onde
posso escutar minhas vozes, me afastar dos gritos que me cercam e tentar
compreender os sussurros dos que me amam.
Outro momento de intensidade desse encontro foi quando Mia comentou sobre sua relação entre o trabalho como biólogo e escritor. Ele disse que ser biólogo de certa forma o ajuda a “compreender as linguagens dos outros seres”. Neste momento lágrimas rolaram pelo meu rosto. Porque tenho uma profunda paixão pelos seres de fauna e flora, principalmente as árvores. Seres que venho tentando aprender sua linguagem e me apaixonando por eles cada vez mais. Tem dias que me sinto pássaro e quero sair por aí voando e descobrindo, mas na maior parte dos dias, me sinto árvore e quero ficar e sentir a profundeza do existir.
E claro que não posso deixar de mencionar que ao
expressar sua posição em relação a
governos totalitários e sua repulsa a ditadura, Mia Couto fez coro com centenas
de vozes que estavam ali, não só porque são leitores e apreciadores literários,
mas porque sabem que produzir e defender a expressão literária será um dos
grandes desafios deste momento trágico de retrocesso histórico que enfrentamos
no Brasil. O escritor, o livro, a poesia são as primeiras ameaças aos chicotes
de governos antidemocráticos. Porque é através da literatura que as ideias se
manifestam, se proliferam e cavam as asas da liberdade nas costas do oprimido. Aliás
liberdade foi a palavra que Mia escolheu para preencher o caderno que todos os
escritores das mesas foram convidados a escrever durante toda a Flim. Palavra
que dispensa explicação, pois em nossos silêncios compreendermos aquele grito.
Quando pensávamos que era o fim, veio a surpresa. Comovido pelo calor brasileiro (acho),
o autor quis receber o público. Num gesto de generosidade e carinho, recebeu e
autografou os livros de mais de 200 pessoas que esperaram para poder levar para
casa um pedaço de papel com um rabisco de tinta feito pelo escritor.
Enquanto estava na fila observando as pessoas, eu me
questionava por que ainda estava ali. O encontro já tinha sido intenso,
flamejante, perfeito, o que mais eu buscava? Por que não estava satisfeita
ainda? Ao mesmo tempo que me sentia meio ridícula, não conseguia conter o
desejo de chegar um pouco mais perto do escritor que tanto admiro. Entrei na
sala meio sem jeito e toda estabanada, deixando as coisas caírem no chão de ansiedade, mas de repente quando Mia Couto olho-me nos olhos e disse:
olá! O tempo parou e ali naquele momento entendi por que eu quis tanto estar
ali tão perto. Era para poder olhar nos olhos daquele que escreveu as palavras
que tocaram minha alma desde a primeira leitura. E na transparência e compaixão
daquele olhar tudo foi explicado, tudo foi entendido. A única coisa que
consegui dizer foi: obrigada por transpor o teu silêncio!
E tudo isso durou
poucos segundos que para mim serão eternos, pois cada vez que abrir o livro para
lê-lo me lembrarei daquele olhar e será como se estivéssemos de frente um ao
outro começando um bom dedo de prosa.
Enfim, esse foi um resumo de dois dias de Flim que pude participar, claro que
muitas outras coisas aconteceram e tem mais escritores que quero comentar.
Farei isso aos poucos.
A-ho!