sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO - Angélica Freitas

Simplesmente amo poesia, vocês sabem. Mas tem um tipo de poesia que me encanta mais, que é aquela que me tira da zona de conforto, me intriga e leva para algum lugar para além do chão batido do cotidiano.  Acho que já disse isso por aqui...

um útero é do tamanho de um punho foi minha última leitura de 2019, e que leitura! Posso dizer que encerrei o ano com chave de ouro. A poesia de Angélica Freitas nos trasntorna, nos desajeita, incomoda e ao trazer em versos questões do chamado feminino, faz pensar naquilo que muitas vezes deixamos pra lá, pra depois, tudo aquilo que incomoda em ser mulher. 
A cobrança pela aparência padrão, pela maternidade, os preconceitos de gênero, homossexualidade, transsexualidade. Enfim, não é um livro que me faz ficar divagando, sonhando ou inebriada com a sonoridade das palavras, não. Fiquei tonta, inquieta, com raiva às vezes e rindo em outras. Seus versos são carregados de questionamentos, de incômodos e bastas. Mas são também cheios de ironia e sarcasmo, que nos faz até rir de certos absurdos do patriarcado. 

Com um estilo muito único e original, a poesia de Angélica Freitas vai nos tomando verso a verso, página por página. Em seus versos livres e bem articulados, contemporâneos por assim dizer, são denunciadas as opressões e violências sofridas por nós mulheres e como lidamos com isso.  Numa escrita franca, ela fala do ser mulher de uma maneira autêntica que faz coro com nossas vozes mais íntimas.

Agélica contou em entrevista ao Estratégias Narrativas, que quando criança ganhou de presente uma enciclopédia chamada O mundo da criança, e o primeiro volume  era de Poesia para criança, ao ler foi tomada de uma alegria enorme por achar aquilo uma brincadeira, um jogo e essa foi a sua entrada na poesia, lendo poesia para criança, uma poesia mais lúdica e que de certa forma influenciou seus primeiros poemas que eram cheios de humor. E a partir daí descobriu um imenso prazer em escrever poemas.
É visível que o humor e até mesmo a ludicidade fazem parte de sues versos até hoje. A autora brinca com as palavras num jogo poético que ora faz rir, ora faz pensar, ao mesmo tempo que diverte, inquieta.

"im itiri i di timinhi di im pinhi
quem pode dizer que tenho um útero
(o médico) quem pode dizer que funciona (o médico)
i midici
o medo de que não funcione
para que serve um útero quando não se faz filhos


para quê


piri qui"


Questionamentos, reflexões, inquietações. Tudo isso veio à tona enquanto eu lia e acho que não é um livro pra ler e encostar na estante, pelo contrário, é pra ler e reler, porque o tema abortado é um tema que não se esgota: Mulher! ou Mulheres! ou Nós!
O poema que mais gostei é o que dá nome ao livro, ele traz uma reflexão profunda sobre a propriedade do corpo da mulher, quem manda em nosso útero? Por que temos que passar por tantas instituições, estado, igreja, família, para poder decidir sobre nosso próprio corpo?

"pra que serve um útero quando não se faz filhos", esse verso me tocou sensivelmente, pois vem de encontro a uma reflexão que tenho feito nos últimos anos, a não-maternidade. Parece ser fácil, escolher não ter filhos, porém não se pode fugir do tribunal armado que a sociedade nos reserva pelo simples fato de você não querer cumprir um papel ditado pelo patriarcado. Quando você diz não quero ter filhos, logo vem a pergunta, "mas então o que você vai fazer da vida?" Como se parir fosse nosso único propósito.

Pra terminar, devo avisar aos leitores interessados que caso não tenha nenhuma familiaridade com os temas abordados, seria interessante ler a respeito antes. Acredito que pode tornar a leitura mais saborosa.


Sobre a autora:

Angélica Freitas, poeta e tradutora. Nasceu em Pelotas, RS em 1973. Chegou a cursar Letras mas desistiu do curso porque queria mesmo era escrever. Afinal escreve poemas desde de quando era criança. Formou- se em jornalismo e mudou-se mais tarde para São Paulo, onde trabalhou como repórter para o jornal O Estado de S. Paulo e a revista Informática Hoje.

Publicou o livro Rilke Shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) e um útero é do tamanho de um punho (São Paulo: Cosac Naify, 2013). Angélica Freitas foi coeditora, com os poetas Fabiano Calixto, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, da revista de poesia Modo de Usar & Co.

Seus poemas já foram publicados e traduzidos na  Espanha, México, Estados Unidos, Alemanha e França.


Karina Guedes
@okarapoetica

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